quinta-feira, 31 de março de 2011

4ª Ediça

Aconteceram algumas coisas entre a última Edição e esta. Fui para o Rio visitar minhas filhas, minha mãe e irmãs, meus amigos e voltei doente: dengue, conjuntivite e aquelas perebinhas que aparecem em minha boca e meu nariz resolveram vir todas juntas numa só tacada. Imunidade baixíssima. Por isso atrasei esta nova e maravilhosa Edição.

Começo lembrando de um evento que rolava no Borburinho (bar aqui de Recife) chamado VINIS & OUTRAS COZINHAS, capitaneado por DJ 440 e pelo chef Ruben Grunpete. Coisa fina!


Dou um toque sobre o livro que Hugo Montarroyos fez chamado DEVOTOS – 20 ANOS, sobre toda uma geração punk que mudou o Alto do José do Pinho.


Moduan Matus escreve um texto sobre o Desmaio chamado O VÔO DO DESMAIO PÚBLIKO onde dá uma geral neste movimento poético iguaçuano.


Falo um cadinho sobre o filme de Quentin Tarantino DEATH PROOF e ainda dou de brinde um linkzinho para baixar a trilha - da pesada - do filme.

Fecho indicando o SANGUE DA PALAVRA blog do Marlos Degani, que imitei descaradamente para a construção deste Zarayland e de canja um poema meu e dele chamado Ábaco.


Bom apetite!

Um beijo um queijo e um beliscão de caranguejo!

Vinis & Outras Cozinhas


Este era o nome do evento organizado pelo DJ 440 e pelo consultor gastronômico Ruben Grunpeter as quintas-feiras no Bar Borburinho. O bar eu já conhecia pois fui convidado pelo pessoal do Nós Pós (grupo de Poetas recifense) para declamar num de seus recitais que foi justamente ali. Depois voltei algumas vezes por sempre ler sobre agitos bacaninhas que por lá rolavam. O DJ 440 eu ouvi tocar lá na Bodega do Véio em Olinda. Por conta disso, quando vi que tava acontecendo esse encontro entre a música de Junianne e os petiscos inusitados de Ruben, resolvi conferir.


Foram quintas maravilhosas. Na época elas tinham gosto de sexta-feira. O bar fica no Recife Antigo, prédio tombado, mesinhas na calçada e aquele clima bom de meidirrua. DJ 440 garantindo a alegria e a swingueira com músicas brasileiras antigas. Só som da pesada. Cerveja gelada e a cada quinta um prato diferente e sempre surpreendente. Fiquei amigo de 440 e de Ruben Grunpeter.

Certa noite pedi para tocar Sergio Sampaio, umas das poucas coisas que infelizmente 440 não tinha, mas mandou um "Relax que um amigo meu está chegando com um vinil dele". E logo chegou. Pude ouvir “Cala a Boca Zé Bedeu” e conhecer duas figuras que tanto admiro daqui de Recife: Giva & Dani. Nesta mesma noite, Giva ainda me apresentou Fabinho Barreto que quase não vejo, mas quando nos encontramos é sempre festa, sempre astral.

O que é bom dura pouco. Neste caso, durou pouquíssimo. Delicioso e curto como um último cigarro do maço. Doce e pequeno como um brigadeiro. Vinil & Outras Cozinhas ficou tatuado aqui no meu ouvido, no meu paladar e nas minhas boas lembranças!


Borburinho Rua Tomazina, 106 - Recife Antigo Telefone: 3224-5854 Horário: 17h/último cliente (sex. a partir das 16h; sáb. a partir das 18h; fecha dom. a ter.)

Devotos - 20 Anos


O livro de Hugo Montarroyos é na verdade a história de uma época. Não é exatamente um livro sobre os 20 anos da banda punk recifense Devotos (quando eu conheci o som da banda em 1996 era ainda Devotos do Ódio). Também não é sobre a periferia e os morros de Casa Amarela. Como não é sobre o Alto José do Pinho. Embora seja tudo isso.

O livro é um apanhado de histórias saborosíssimas sobre pessoas que viviam situações parecidas e que por conta da Arte conseguiram mudar a perspectiva de suas vidas e com isso, influenciar pessoas e o próprio local - carente e preconceituoso - onde moravam para uma outra realidade.

A leitura é esperta, com idas e vindas nestes vinte anos de história, casos engraçados, tristes, que narram vitórias e fracassos de vários jovens que superaram as limitações pessoais, físicas, sociais, financeiras e psicológicas, com criatividade e devoção a uma causa.

Basicamente tudo gira em torno de três cabras, Cannibal, Neilton e Celo (Devotos). Mas também é a história de Tiger, de Zé Brown (Faces do Subúrbio) e de toda uma geração de artistas que explodiam criativamente, com poucos recursos e nenhum apoio, pelo contrario, perseguidos e completamente ignorados pela mídia.

O projeto gráfico é outro destaque do livro que torna tudo com sabor de fanzine e é assinado por Cubiculo. A leitura é agradável e a diagramação só contribui para tornar tudo muito mais ágil.

Eu sempre tive a curiosidade de conhecer o Alto José do Pinho e já tive lá umas vezes tomando umas com seus moradores. Já levei o BiOn! (fundador do cineclube Buraco do Getúlio – Nova Iguaçu – RJ) para conhecer o Cannibal e tive a chance de ir ao lançamento do livro na livraria Cultura e tirar foto com o autor e com os protagonistas. Garanto uma coisa, este livro vale muito o investimento
!

O Vôo do Desmaio Públiko


É um privilégio estar acompanhando o Movimento Desmaio Públiko desde a sua primeira publicação em fanzine, editado pelos poetas Cezar Ray e Eud Pestana, em dezembro de 1991.

A região, Nova Iguaçu, (na) Baixada Fluminense, (do) Estado do Rio de Janeiro, tinha essa carência, a de algo aglutinador de poetas, devido a uma vasta produção, que, sem um veículo próprio, poderia pegar uma estrada sem volta, sem bifurcações e sem atalhos.

Em certa ocasião os números do zine saiam quase semanais. Era uma avidez! Todos queriam ler e publicar. Notava-se um visível aumento da produção literária e certo reconhecimento aos poetas participantes. Sendo que o intercambio com a capital do Estado e de outros municípios também aumentou, passando a outros Estados e a todos os poetas, de todas as épocas no mundo, editados em língua portuguesa.

Após constatar (1996), que mais de 120 poetas da Baixada Fluminense haviam sido publicados no Fanzine, selecionei-os em um livro: Anos 90 – Poetas na Baixada (Fluminense), Uma coletânea do Fanzine Desmaio Públiko, em tiragem de 1.000 exemplares, lançado em 1997, já esgotado.

Mas o Desmaio não é só isso! Ele é um movimento, pois: aglutinador, zine, reprodutor, performático, projeto de apresentações (que envolve poesia, música, artes plásticas, teatro, dança e artesanato), intercambio e mídia virtual. Começou também a dar filhotes!

Em 2002 saiu a Revista Comemorativa de 10 anos de fazimentos do Desmaio, totalmente patrocinada pela Secretaria de Cultura da Prefeitura local.

O nome da cidade já está em incontáveis partes do universo literário com o selo do Desmaio.

Hodierno o Desmaio, mais disseminado, continua tirando coisas dos casulos. Coisas belas, que na imaginação criam asas e sustentam a terra um pouco mais leve no espaço e, também, no tempo.

Caros, o Desmaio Públiko quer fazer mais história!


Moduan Matus, abril de 2010. Com uns 14 livros publicados, mais uns tantos prontos esperando ser publicados e não sei mais quantos na caixola, Moduan é poeta referência na Baixada. Fundador do Jornal Teia (com Edu Cavalcanti e Adalberto Cantalice), do Grupo Caco de Vidro, me influenciou diretamente para criação do Desmaio Públiko. Foi dono do Raízes (que falei na edição passada) e é pai da Thalyta, da Nicole e da Marília. Sou fã deste cara.

Death Proof


Tenho mania de rever filmes que gosto, uma infinidade de vezes. Talvez herança de Raymundão (meu pai) que desde criança me relatava as incontáveis vezes que assistiu em Jacareí - SP (sua cidade natal) o filme “Sete Noivas para Sete Irmãos” (musical que comprei há pouco tempo, mas ainda não tive tempo de rever).

Só agora penso num paralelo a esses musicais que meu progenitor sempre fora fã com os filmes que tanto adoro hoje: A música. Sai a Broadway e entra a cultura pop. Músicas que gosto ou que ainda vou passar a gostar a partir dos filmes.

Existem várias películas que ganham espaço na minha filmoteca por conta da trilha sonora. Na maioria das vezes os filmes também me agradam. Não sei se pela colocação exata das músicas nos momentos certos, não sei se pelo bom gosto (e bom gosto é uma coisa vaidosa), só sei que “Transporting”, “O Santo”, “Juno”, “Durval Discos”, “Corra Lola Corra”, “Alta Fidelidade”, “Piratas do Rock”, “Baile Perfumado” para citar o que lembro agora são exemplares de casamentos perfeitos.

Mas nenhum cineasta é tão cirúrgico neste assunto quanto é Quentin Tarantino. Além de diretor com personalidade é ele quem escolhe o som que vai rolar. E haja sonzeira. Antes de ir para o Rio, vi pela primeira vez Death Proof (para mim, já um clássico) e fiz festa em meus ouvidos calejados, com uma trilha de arrepiar. Filme e trilha perfeitos. Tarantino com seu humor e violência sempre me presenteia com surpresas. E não foi diferente desta vez. Surpresas esperadas como a ressurreição de atores já meio acabados em Hollywood, como foi com John Travolta, Pam Grier, Robert Forster e neste filme com Kurt Russel , mas também com uma inesperada trama ou fim.

Neste longa Tarantino esbanja musicas fantásticas entre seus tradicionais diálogos imensos e cheios de impressões pessoais sobre o mundo pop, filosófico ou banal. Mais uma vez acerta a mão, surpreendente, ousado, inteligente e acima de tudo, divertido.

Deixo aqui minha sugestão, assistam sem preconceito. Ou com todo conceito já formado sobre os filmes do feioso ex-atendente de locadora. Falem até mal do filme. Tirem as crianças da sala. Mas aproveitem a trilha sonora que deixo aqui para vocês baixarem. Marra é pouco. Como diria o fotógrafo Maurício Valladares (do também surpreendente programa de rádio Ronca Roca) é de tirar pica pau do oco!


Sangue da Palavra- O Blog do Marlos Degani


Certa feita eu disse ao poeta e amigo Luis Cantalice (com um livro na maternidade) que ele é um poeta do caralho! Mas, mais que isso, que ele me inspirava a escrever. Talvez com uma típica arrogância minha: “Você escreve bem, mas falta alguma coisa em seus textos que eu quero resolver.” Ou escrever melhor. Talvez hoje não ache mais isso. Aprendi com o tempo e a estrada que resolvi seguir, a humildade. Demorou e nem sei se posso expiar minha culpa quanto a este pecado capital (arrogância é um deles?)


Mas sei de um que sempre me ajudou. A Inveja. Não aquela inveja cheia de rancor que as pessoas que nunca fazem nada, sentem. Porque não querem, não tentam (preferem o conforto e a segurança de suas vidas como estão) seguem denegrindo quem realiza ou tenta, o que elas gostariam ou desejariam fazer, mas não fazem. Minha inveja sempre me guiou de forma positiva. Como inspiração. “Porra, fulano está fazendo isso e é muito bom, vou fazer também”. Foi assim seguindo pessoas que invejava (ou admirando, sendo hipócrita ou usando de eufemismo) que sou quem sou.

Sem vergonha em admitir isso.


Roberto Lara na orelha do livro “Sangue da Palavra” de Marlos Degani admite esta inveja com sua elegância e é genial. Pois bem, eu invejo Marlos Degani. Não só pelo seu talento adquirido em labutas severas atrás do poema, mas pela sua inteligência, sagacidade, humor, beleza e também pelas suas ranzizices e erros.


O Zarayland surge meio que como uma inveja de seu Blog (Sangue da Palavra) e de Hugudão (Tirando da Gaveta - Muita Manobra). Surge daquele raciocínio: “É do carai, e quero ter também! “ Surge tão descarado que até a foto rindo em alto astral - roubei do Blog dele - onde aparece Momo sorrindo com um exemplar do Desmaio Públiko nas mãos, imitei em minha imagem gargalhando em clique de Marcos Serra quando esteve aqui em Recife.


Marlos é o tipo de artista que dá gosto invejar. Começou lá atrás, comigo, no Desmaio e foi crescendo, aprendendo, reciclando, até chegar ao que é hoje (que ainda não é seu ponto ideal) um dos maiores poetas da história de Nova Iguaçu. Com imagens espertas, rimas bem construídas (nada óbvias), com poemas que estão sempre entre o ser poema e o nada. Com crônicas poéticas, ou cheias de raiva e escrotidão, texto ágil e tantas vezes embaçados por uma lente que quer dizer muito, mas que pondera por ter dúvidas (ser humano). Outras é faca na goela.


Seu Blog merece ser visitado para desvendar não o artista. Mas sua busca pela “quem sabe arte!”. Caminho que tantos grandes antes já percorreram tentando encontrar sua voz exata. Acompanhe a trajetória inquieta, de uma pessoa em plena ebulição criativa, e verá que vale a caminhada. Sigam o poeta!

De brinde um poema que fizemos juntos numa manhã, viradaços!


Ábaco


Todo dia sempre

Desisto de alguma coisa:

Foice, lâmina, excremento.


Todo dia sempre

Nunca termino a dia sem

O grito de um arrependimento.


Todo dia sempre

Meço a distância amargurada

Entre o que pode ser e o nada.


Todo dia sempre

Não sei bem se estou

Numa curva ou numa reta:


Não sei bem se é o fim

Ou se é um poema que começa.

Marlos Degani é poeta formado na generosa vertente do movimento Desmaio Públiko em Nova Iguaçu no início dos anos 90 do século passado. Tem 42 anos, um livro publicado – Sangue da Palavra em 2007 (que concorreu ao Jabuti em 2008) e um audiobook (Marlos Degani – Até Agora 1992/2008) com a sua poesia completa até 2008. É jornalista-colaborador e integra a equipe de colunistas do sítio do Baixada Fácil (http://www.baixadafacil.com.br/).


http://www.sanguedapalavra.blogspot.com/

domingo, 13 de março de 2011

Terceira Edição (Resenhas, Nostalgia e Espaço Aberto)

Nesta terceira edição deixo de lado meus contos e poemas e entro numa de resenhar umas coisas que curto, relembrar lugares e abrir espaço para que outros publiquem seus textos aqui no Zarayland.

Primeiro indico o Blog PÁPRICA DOCE de minha querida amiga FLOR BAEZ. Se o que escrevi não te convenceu é porque não consegui transmitir o quanto é bacana seu Blog. Então acessa lá camarada!

Depois conto como descobri MEU BAR aqui em Recife, o BANQUETE.

Queria contar de coisas e lugares legais que vivi e fui, então comecei com o BAR RAÍZES, boteco que abrigou a cabeçada de Nova Iguaçu por quase 10 anos e ainda hoje faz falta.

ONTEM de JR JÚNIOR é o primeiro texto de amigos que publico aqui. É Espaço Aberto e ao mesmo tempo Nostalgia. Mas da boa, aquela que faz os olhos rirem!

Por último o disco EM PAZ COM OS MEUS de CLAUDIO LYRA onde dou minhas impressões sobre este belo álbum e ainda dou de bandeja um linkzinho para quem quiser baixar o álbum completo.

Espero que gostem!!

Um beijo um queijo e um beliscão de caranguejo!

Páprica Doce (Tempero, café, experimentação impressa, lucidez, insônia, prasadam, Mamas and the Papas, flauta doce e rodízio)


Blog de Flor Baez (conheço esta menina desde o ventre de sua mãe, querida amiga Lúcia) é um misto de diário da sua busca pela paz através de meditação, literatura, percepções e dia-a-dia com um grande guia para entendermos melhor tudo que nos rege. Flor é um bocado mais agitada que seu Blog, inquieta, festiva e intensa é meio paradoxal ao Páprica Doce que é tão zen. Ao ler seus posts, já sentimos o aroma de incensos e a voz suave de Devendra Banhart. É um blog para quem busca espiritualidade, mas acima de tudo é um instantâneo desta busca singrada por Flor. Namastê Páprica Doce.


Flor Baez: Vegetariana,jornalista,Kavita,Derviche com cheiro de sândalo. E para os mais íntimos a Bruta flor do querer. É uma das criadoras do Cineclube Buraco do Getúlio e recentemente inaugurou o blog de receitas Birosca da Flor


http://papricadoce.blogspot.com/

Banquete



Assim que cheguei a Recife, comecei minha peregrinação por bares da cidade atrás do Bar que chamaria de “Meu”. Rodei, bebi, comi, dancei e enfim em setembro do ano passado finalmente o encontrei. Por acaso. Estava indo a um show no Espaço NAVE (que já conhecia por conta de um show de Rogerman) e cheguei cedo demais. Resolvi biritar um pouco num bar /casa em frente.

Surpresa foi me sentir muito a vontade em sua área aberta em frente ao bar (um quintal sem árvores, mas com canteiros de temperos), onde pude fumar meu Marlboro a vontade sem a perseguição aos fumantes que te faz levantar toda hora para ir até a rua carburar em outros espaços. Cerveja gelada, cardápio com pratos inusitados e garçons “gente-fina” (Mago e Sandrinho). Ali eu me senti de novo em casa.

Naquele dia tocaram Aaron e Fátima, música bacana, pessoas maravilhosas. Ainda conheci nesta mesma noite Eudes Régis (fotógrafo do JC que hoje é um dos meus melhores amigos aqui em Recife).

Já declamei poemas no Banquete, já toquei como DJ (com T.Guerra), já comemorei meu aniversário, já fui o último a sair e o primeiro a chegar. Provavelmente farei a primeira edição do EnContos versão PE lá (já que recebi um convite do proprietário Sergio Buarque – um entusiasta da literatura). Sou habitué de suas mesinhas amarelas ou de madeiras escuras. Lá bebo Bohemia gelada, como Berinjela recheada com Atum, escuto Pixies, Júpiter Maçã, Mutantes, Arcade Fire, converso com o gerente/amigo Jonas, encontro Eudes e Suzi, Coelho, Urian entre outros amigos queridos.

Quem quiser me encontrar em Recife nas noites de quinta-feira ou sexta-feira, pode me procurar lá no Banquete, um lugar para comer, beber e pensar.


Bar e restaurante Banquete
Rua do Lima, 195 (ao lado da Igreja e em frente à TV Jornal)
Telefone: (81) 3423.9427

O Raízes

O Raízes foi o nosso bar/lar durante bons 8 anos. O bar na verdade era uma pensãozinha que só abria de dia. Moduan Matus sugeriu ao seu dono (Celso Filizola) que o deixasse funcionar como um bar cultural a noite. Não demorou para que as noitadas naquela rua calma ao lado da Prefeitura de Nova Iguaçu - onde espalhávamos as mesas até a praça em frente - se tornasse mais atrativo que o movimento diurno.


Moduan e Sil logo assumiram todo o horário do bar, mudando assim a decoração (que ganhou quadros de artistas-plásticos que freqüentavam a casa), o cardápio (que foi privilegiado com o famoso Feijão do Moduan e o Músculo ao Vinho), a música (Charley, Marcelo Peregrinos,entre tantos outros que participaram de jams e canjas).

Lá nos encontrávamos quase todas as noites para colocar o papo em dia, ler poemas (Roda de Poesia que durou bem uns 03 anos), discutíamos filosofia (Cerveja Filosófica), passávamos o dia pintando (Manhãs de Outono). Comemorávamos nossos aniversários. E quando os primeiros filhos foram aparecendo, realizávamos os Chás de Fraldas lá também. Fizemos festas várias (Bregafona, Doçuras e Travessuras, Anos 80, Nordestina, Noite do Vinil, entre outras). Assim como o Daniels Bar, foi um berçário para vários projetos artísticos e culturais de Nova Iguaçu.

Kátia Vidal assumiu o bar em 2004 e segurou a onda por mais 3 anos, mudando novamente o formato do bar e de seus freqüentadores. Uma rapaziada mais nova descobriu e se descobriu ali. Bandas como Carlitos & Carmen Kubitschek, Sofia Pop deram seus primeiros shows lá. Teatro, performance e circo também passaram a dar o tom da casa. Que novamente ganhou nova decoração, novo cardápio e novas músicas.

O Raízes foi a marca dos anos 00. Década transitória como bem representou o bar. Uma geração inteira se tornando adulta com novos compromissos, filhos, profissão, responsabilidades e uma geração completamente nova cheia de sonhos, inspirações, pirações e tesões pronta para arrasar chegava. E o Raízes acompanhou tudo isso. Saudade do Raízes pá carai!

Ontem



Ontem, enquanto participava de uma roda de poesia, pude perceber o quão rápido o tempo passa. Há vinte anos atrás “descobri” a Poesia. Por conta de dois acontecimentos: O Filme “Sociedade dos Poetas Mortos” e o reencontro com um velho amigo, que estava então inaugurando uma publicação chamada “Desmaio Públiko”. Tratava-se de um Fanzine de poesias, que tinha o objetivo de publicar poetas anônimos e poetas consagrados, lado á lado. Eram poemas curtos, muitos “Haicais”, impressos em uma folha A4, frente e verso. Tinha uma periodicidade semanal e era distribuído pela cidade, durante as noitadas em que, a turma que participava, curtia juntos. Havia um ponto de encontro certo nestas noites, um bar onde toda a turma que curtia Arte e Cultura se encontrava. Eram músicos, poetas, atores e atrizes,artistas plásticos, ”alternativos” de um modo geral. Eram noites regadas á poesia e performances de todos os tipos. Nossa turma variava em torno dos 20 anos de idade. Éramos solteiros, alguns estudantes, muitos ainda morando com os pais. Víamos poesia em tudo. Em todo gesto de sincera exposição dos sentimentos. Do amor á dor. Nossas poesias não tinham comprometimento com nada. Escrevíamos o que viesse á cabeça, em nossos transes alucinados que todo aquele tesão de estarmos simplesmente apaixonados pela vida, nos trazia. Produzíamos vários poemas em guardanapos de papel, que eram recolhidos pelo Cézar Ray, muitas vezes sem nem mesmo percebermos, e que na semana seguinte eram publicados no ”Desmaio Públiko”. Passamos a promover “Encontros com a Poesia”, rodas de poesia intercaladas com apresentações musicais e esquetes teatrais. Com o tempo esses “Encontros com a Poesia” tranformaram-se num evento chamado “Projeto Desmaio Públiko”. Poesia, Música, Teatro, Dança e Artes Plásticas. Uma Enorme Exposição de Sentimentos. Uma Enorme Exposição de POESIA! Isso era o Desmaio Públiko! Passamos a ser chamados de GRUPO DESMAIO PÚBLIKO, qualquer um podia participar deste grupo. Não tínhamos estatuto, regras, normas... Não, nada disso. Um grupo informal, que nunca foi criado. Criou-se por si só. E era exatamente esta LIBERDADE a válvula propulsora de todas as ações. Ficamos conhecidos em todo o círculo de poesia alternativa do Rio. E íamos a todos os encontros que éramos convidados. Com carinho especial pelo “Terças Urbanas”, promovido pelo querido Poeta “Samaral”, criador do JORNAL FANZINE URBANA, vanguarda em poesia alternativa nos anos 90. Os anos se passaram, o “Desmaio Públiko” cresceu. Tivemos filhos (quase todos tiveram), muitos casaram e os encontros ficaram menos freqüentes. A publicação seguiu o mesmo ritmo. Hoje, vinte anos depois do primeiro Fanzine, não me lembro mais da última publicação. Não posso dizer que o DESMAIO PÚBLIKO acabou, pois ainda o sinto vivo, adormecido, mas vivo. E ontem pude sentir a mesma emoção que sentia nas apresentações dos anos 90. Fiquei um pouco nervoso, era um público novo. Bastante misturado. Tinha veteranos, mas também tinha gente nova, muita gente nova. Ahh... e um menino de uns vinte anos que leu um dos seus primeiros poemas. Um poema apaixonado, feito para a namorada, que estava lá e que ele convidou ao palco, numa declaração PÚBLIKA de amor, que ele assumiu ser Brega, e que eu achei lindo. Um verdadeiro DESMAIO PÚBLIKO ! Jr Júnior 17/10/2010 Jr Júnior é arquiteto, poeta e pai de Gabriel e Letícia. Nos anos 90, com Alcides Eloy e Cézar Ray se apresentavam nas bocadas com o nome de Decúbito Dorsal. Está com um livro no prelo para ser lançado ainda em 2011, PENTE FINO.

Em Paz com os Meus – Claudio Lyra


Com produção do próprio Claudio e do ex-DeFalla Flu, em Paz com os Meus é um dos meus discos preferidos. Sonzeira agradabilíssima. Claudio surfa nesta praia da MPB/Pop Rock/Bossa Nova como Los Hermanos, Kassim, Moreno Veloso. É moderno sem ser “muderninho”.

“Quando o Sol Raiar” é música que toco sempre onde vou (aqui em Recife tem gente que canta de cor) uma marchinha com poema simplesinho e por isso tão bonito. “Em Paz com os Meus” é um rock com mensagem bacana que levanta astral até do cabra mais deprê. “Quando o Amor Chegar” é uma balada com participação de Fátima Guedes. “A Folia da Menina Passarim” é uma toada gostosa feita para sua esposa, a poeta Mariana Dias.

O disco tem participações luxuosas de Carlos Lyra (tio de Cláudio), Maurício Maestro, Kay Lyra, Chiquito Braga e já da citada Fátima Guedes.

Claúdio e Mari estreiaram minha casa aqui em Recife quando vieram passar o carnaval de 2009 aqui comigo. Ficamos de fazer pelo menos uma música juntos, mas não rolou. O que rolou foi muito som, muita poesia, macarronadas e fantasias.

Em Paz com os Meus é um disco que recomendo muito. Por isso passo o endereço (com prévia autorização dele) para quem quiser baixar e se deliciar com o som de Claúdio Lyra.

www.myspace.com/claudiolyra

http://rapidshare.com/files/106992422/UQT2007_Claudio_Lyra_-_Em_Paz_Com_Os_Meus.rar

quinta-feira, 10 de março de 2011

Segunda Edição

Tentarei atualizar sempre que possível, principalmente enquanto não zerar meu estoque de coisas para serem publicadas. Hoje é quinta-feira, um dia após eu ter posto no ar este Blog e minha vontade em sair entupindo de textos é imensa. Mas tentarei ir com calma. É que nesta época nossas reuniões eram semanais e estávamos escrevendo como loucos. Só mais esses quatro contos e este poema e a próxima atualização só na outra semana. Ou não...

Nesta “Edição” seguem quatro contos da época dos EnContos, são eles:

O SENHOR DO DESERTO (23 de janeiro de 2006) – Alguém chegou na reunião e disse: “O próximo tema será o deserto”. Escrevi uma ficção dentro de uma história real. Usei informações verdadeiras e viagens puras para compor este conto,

MEU PAI E AS ESTRELAS (30 de janeiro de 2006) – O Henrique Souza – um dos fundadores das leituras de contos – parou de ir em nossas reuniões, o que nos fez questionar por onde ele andava, porque havia sumido... e assim mais um tema surgiu “Henrique, cadê você?”,

A INSÔNIA DO BARBEIRO (03 de fevereiro de 2006) – Dentro da máxima de que tudo é possível, foi sugerido que escrevêssemos sobre coisas completamente sem sentido. Apareceu esta “insônia do barbeiro” o que – não sei por que – me remeteu logo para Gabriel Garcia Marquez e 100 Anos de Solidão. Cometi esta pequena heresia, situando meu personagem em Macondo

e EU NÃO MATEI O DOMI Jr (13 de fevereiro de 2006) – Motivo parecido com o sumiço do Henrique nos fez escrever sobre o sumiço de Domi Júnior de nossa mesa. Só que mais trágico, já imaginamos que alguém o tivesse assassinado.

Publico também o poema SAUDADE que escrevi assim que cheguei aqui em Recife, sentindo falta de tudo e de todos do Rio. Das minhas filhas, da minha família, dos amigos, de Nova Iguaçu.... Enfim de tudo!

Um beijo um queijo e um beliscão de caranguejo!

Saudade


A saudade violentamente fera
Arrebenta portas com suas pernas gigantes
E me alcança quando menos espero
No terreiro das mais tolas lembranças

transforma tudo num mesmo deserto
minhas lágrimas no travesseiro soterro
A espera do sono chegar mais perto
e a alegria me visitar em sonhos
- mágicos –

A Saudade ri de mim como um carrasco sádico
Tortura por prazer e por maldade
- sem dó -
E eu me sinto inválido
Um quase nada
Um sem
Um
e
só.

Eu Não Matei Domi Júnior!


Tenho vários motivos para odiar Domingus Sabath Júnior. Mas não lhe mataria por qualquer uma dessas razões. Por tanto, não creio que seja necessária a minha presença em tal interrogatório. Tudo bem, eu estava lá na Gleba Modesto Leal, na reunião anual dos “Formandos de 1989”. Tudo bem, eu não tenho um álibi para testemunhar que na hora do ocorrido eu estava longe. Procurando um lugar que vendesse cerveja. Mas cá entre nós todos ali tinham maiores e melhores motivações para riscar do mapa o Domi Junior. E eu para falar a verdade, até amava o cara.

Claro fiquei indignado com ele um monte de vezes. Não sei se vocês sabem, mas sou um designer com um nome no mercado. Mas comecei copiando desenhos do argentino Boris Valejo no curso Oberg. Quando vi os rabiscos do Domingus no caderno do colégio, sem técnica alguma, usando esferográfica, lhe recomendei o curso. E quem diria, com uma semana ele já era o queridinho do professor que ainda teve a cara de pau de falar para toda turma, que se alguém dali ia ter futuro nas artes plásticas, este seria Domingus Sabath.

Certa ocasião, estávamos todos bebendo no Bar Brasil, era dezembro, antes da primeira individual do Domi e ele estava a zero de idéias. Deprimido, reclamando que estava na entressafra, sofrendo “um branco criativo”. Comecei a rabiscar formas nos guardanapos e a sugerir estudos de cores e tal. Já estávamos bastante chapados, mas lembro-me perfeitamente bem de minhas sugestões. Qual não foi minha surpresa, na vernissage, ao me deparar com todos meus croquis transportados para telas imensas e nenhum crédito ou agradecimento para mim. E a infâmia em dizer, no catálogo, que havia sonhado com aquelas formas e cores. Muita cara de pau!

Nosso grupo já foi maior. Quando nos formamos no 2º grau em 1989 tendo o Professor Ruy Afrânio Peixoto como nosso Paraninfo, juramos que todo ano nos encontraríamos em algum lugar (sempre diferente) para saber como andava a vida, trocar experiências e quem sabe ajudar quem tivesse se dado pior em sua investida. Éramos 30 jovens cheios de vontades e futuros promissores pela frente. O frescor da vida tinha hálito de menta e nossa amizade parecia, então, indestrutível. Mas o tempo foi passando e, pelo menos, desde 1999 mantemos nossas reuniões anuais com os mesmos mirrados oito integrantes.

Mauro Popeye se formou em direito e agora é o Doutor Mauro de Araújo e Araújo, Presidente dos escritórios A&A Advogados Associados com clientes que vão da Marinha do Brasil ao mega traficante Jorginho do Imbariê.

O famoso cirurgião Dr. Percival. No colégio um garoto tímido que gostava muito de queimar uma erva e ler sobre filosofia. Sempre foi um leitor compulsivo. Depois, ao acabar o segundo grau, foi direto para a faculdade de medicina passando em primeiro lugar nas duas maiores universidades federias do país.

Henrique Dubtchenko (Riquinho para os íntimos) entrou para o movimento estudantil numa época em que o movimento já não representava nada. Mas suas camisas surradas do Che Guevara, sua boina, seus charutos e seus discursos inflamados permanecem até hoje em suas aulas de sociologia onde é uma espécie de líder aclamado, deixando seus alunos um pouco mais doidos do que já são.

Marcel Perrier, nosso músico francês. Na verdade ele não nascera na França. Mas filho de uma francesa com um sergipano, tinha dupla cidadania e foi estudar música em Paris, voltando três anos depois de gastar todas as economias de seus pais com vinhos e cortesãs e sem aprender muito mais, sobre música, do que já sabia quando saiu daqui.

O Bid foi o que menos mudou de todos nós. Continua um grande farrista, amante da noite e do álcool, assumiu seu lado poeta, assinando suas odes a musas platônicas e noites enluaradas com o pomposo nome de Alcebíades Rubron. Vive por aí, cortejando as estrelas e gastando a polpuda herança deixada por seu pai.

Loui Koifeer. Vive recluso numa mansão imensa. Afastado de todos, se dá ao luxo de aparecer nesses nossos encontros anuais distribuindo presentes para todos, mas reservando-se ao máximo, deixando escapar pouquíssimo sobre sua vida particular. O que sabemos é que enriqueceu no ramo de rações e produtos específicos para animais.

Motivos todos eles tinham para dar uma paulada na cabeça do pobre Domi, fazendo-o despencar desta ribanceira - se é que foi isso mesmo que aconteceu - se estatelando feito um manequim de louça, tingindo a pedra com seu sangue como sua última obra. A derradeira vermelha pincelada.

Mas quem sou eu para especular sobre os motivos de meus amigos. Sei que não fui eu! E que admirava demais seus trabalhos. Na verdade sou um designer porque não vi futuro nas artes-plásticas. Sabia que como um profissional, teria que suportar pressões de mercado, cumprir datas e horários, conviver com pessoas completamente diferentes que eu, lidar com negócios. Mas ganharia mais. Teria mais dinheiro do que sendo “artista”. E claro que fiquei orgulhoso de ver meu amigo Domingus, um cara que não tinha nada, da noite para o dia ter suas obras vendidas a peso de ouro, disputado por estrelas do mundo pop, expondo nas melhores galerias do mundo e ganhando capas de revistas especializadas e de fofocas. Quem iria imaginar que tanto glamour iria se acabar assim, numa floresta na Baixada Fluminense. Ali, onde nascemos, brincamos e estudamos... em Nova Iguaçu.

Agora olhando o sangue diluindo-se como a óleo n’água raz, invadindo o verde da floresta com um contraste fascinante, cores e movimentos rápidos, intensidade e suavidade, percebo que talvez ele tenha morrido feliz, pois acabara de participar de seu mais belo quadro. Mórbido. Mas um belíssimo quadro...

A Insônia do Barbeiro (Uma heresia com Garcia Marquez)


Procurou, entre os restos de sua despensa magra, entre as garrafas de bebidas, alguma que fosse de leite - diziam que o leite devolvia o sono perdido - mas não havia uma gota em casa. E agora estava muito tarde para sair. Nada estaria aberto àquela hora. Não nesses tempos de toque de recolher. E o calor dos trópicos e os mosquitos com seus violinos desafinados só contribuíam para espantar o sono que nem havia aparecido ainda.

Pensou em abrir as janelas para que o ar fresco da noite entrasse, como ninfas aladas, e o ajudasse a respirar melhor. Mas feito isto, a choradeira, os cânticos e o cheiro das rosas, lírios, crisântemos, vindos da casa do morto inundaram seus ouvidos e narinas, lembrando-o do real motivo de sua insônia.

Havia chegado em Macondo atraído pela fama, do progresso e prosperidade, que se espalhara, boca à boca, pela Capital. Capital decadente como um mendigo bêbado e inútil, sem empregos e povoada pela violência e corrupção reinantes no país. Macondo era então um oásis, uma aldeia ainda sem vícios, mas já com nítidos traços de progressos. As pessoas eram felizes, os pássaros cantavam sinfonias a tardinha e as ruas eram perfumadas. Não demorou muito para aquele jovem, cheio de vida e vontade, montar sua própria barbearia. E ali se sentir livre e fazer, daquela vila, sua casa.

“Um prisioneiro em minha própria casa” era o que pensava agora, enquanto espantava uma muriçoca que se atrevia em seu pescoço. Ultimamente as coisas não iam bem em Macondo. A guerra civil era uma dolorosa realidade em todas as partes e Macondo não escapara de suas mazelas. Mas como nunca se envolvera com política, levava sua vidinha tranqüila de barbeiro e contador de casos. Não casara também e nem tivera filhos, o que eram preocupações a menos. E como fora baleado, acidentalmente numa das pernas (aleijando-o), em um dos ataques proferidos pelo governo contra Arcádio Buendía, tinha direito a uma pensão mirrada que lhe garantia os provimentos em épocas de vacas magras.

O morto:
Augustín era filho de um dos coronéis do partido liberal e levara seis tiros no peito quando foi pego distribuindo material subversivo numa rinha de galos. A notícia correu rápida e logo o corpo já estava sofrendo os preparativos para o funeral e não tardou para o convocarem à barbear o defunto. Não tinha medo de mortos, mas não suportava a idéia de barbear um. E negou solenemente tal convite. O que causou indignação da mãe do falecido. “O Senhor vai deixar meu filho ser enterrado assim, sem se barbear? Como um cigano imundo e sem pátria?!”

Nada faria mudá-lo de idéia. Não ia barbear o cadáver e pronto! Estava resoluto e ninguém em Macondo poderia fazê-lo mudar de idéia. Era uma pedra em sua convicção. Nem os protestos dos que diziam que só tomava esta atitude por que os homens da cidade estavam fora. Na guerra lutando por ele. O que, na verdade, pouco lhe importava. Não sabia quem cuidava de tal empresa antes, mas nunca em seus tantos anos de vila, havia cortado cabelo ou feito a barba de um qualquer que já não tivesse alma.

A noite chegou rápida como chegam as más notícias. E com ela visitantes ilustres que largaram os campos de batalha para prestarem suas últimas homenagens ao filho valente de um de seus mais legítimos coronéis. Entre eles, ninguém mais, ninguém menos que o Coronel Aureliano Buendía. Que ao deparar-se com o corpo com a barba aida por fazer indagou o “Por que?”, e recebeu uma resposta que nada o agradou, mandando chamar o barbeiro imediatamente.

Agora, sem sono, lavado por suor gosmento, com as palavras do Coronel ressoando em sua cabeça de codorna, pensava nas opções que tinha para as próximas horas. Barbear Augustín, debaixo de risos e comentários cruéis de quem, antes havia desafiado, afirmando que não barbearia sobre qualquer pena. Ou sofrê-la sem dó nem piedade pelos soldados do Coronel que lhe dera o ultimato algumas horas antes: “De manhã, antes do enterro, ou usas vossa navalha, ou usaremos nossas baionetas”. Quem conseguiria dormir com estas futuras possibilidades lhe batendo o calcanhar?

Quantas tinham sido as vezes que cortara os cabelos do Coronel quando este ainda era um menino? Levado sobre protestos por seu pai José Arcádio. “Raspa a cabeça deste fedelho”. Aureliano havia sido a primeira criança nascida em Macondo e por muitos anos foi um rapaz tímido e quieto. Hoje, ameaçava sua vida por causa das barbas dum cadáver, se esquecera dos doces e balas que ganhava deste infeliz barbeiro quando o deixava aparar seu ninho de vento sem se espernear muito.

Precisava dormir algumas horas antes de decidir que ingrato caminho tomar. Mas cadê sono? Como cochilar estando à mira de seus algozes? A noite era quente e úmida, grudando as roupas no corpo. A água estava morna e descia quase salgada. Não queria escolher a morte. Se gostasse de morrer, teria ido a guerra, para tombar com os louros de um herói. Deixar morrer-se assim... por conta duma barba? Amaldiçoou mil vezes sua profissão. Se fosse um padeiro, estaria esperando o amanhecer para mais uma fornada. Um jardineiro, o acordar das flores. Não para deslizar sua lâmina num rosto frio de um conhecido seu que agora jaz morto.

Pensou em apelar para Dona Úrsula, mãe do Coronel Aureliano. Mas só em cogitar esta possibilidade ouviu, como se ela estivesse ao seu lado, sua voz dizendo: “Até um traidor tem o direito de chegar ao seu último destino com a barba feita. Que dirá um filho de Macondo!”. Arrepiou-se todo. Estava realmente num beco sem saídas como um porco preste a entrar na faca. Demasiadamente velho para empreitar uma fuga pelo rio pedregoso e de águas torrenciais, e não queria acabar seus dias como um fugitivo. Caçado tal um bandido. Era só um barbeiro que não queria barbear um morto. Mas agora também, já era tarde demais para qualquer nova opção. Sua cara de náufrago, ao se descobrir náufrago, testemunhava os primeiros raios de sol. Logo seria dia. E ele não tinha mais tempo. Uma navalha e um defunto os esperavam.

Meu Pai e As Estrelas (em memória de Mario Rodrigues)


Hoje quando olho para a imensidão profunda do céu só consigo lembrar do meu pai. Nunca conheci papai de verdade. Diz minha avó, que só fui sabê-la agora - trinta anos depois - que meu pai não fazia outra coisa se não passar horas e horas fitando o céu em busca de cometas, estrelas cadentes, constelações e - talvez só procurasse isso - disco voador.

Toda vez que ela o chamava: “Henrique! Cadê você???” Lá estava ele, na laje da velha casa em Vila Velha, no bairro de Paul a contemplar o cosmos. O céu era seu lar e sua meta. Acreditava que um dia iriam aparecer marcianos e levá-lo para conhecer as estrelas de perto. Seus gibis prediletos eram os de Buke Rogers e Flash Gordom e ali depositava todos os seus sonhos e imaginação.

Mas, só fui saber deste lado mais romântico da vida de meu pai agora que estou formada e com a vida estável. Antes, toda a informação palpável que tinha, era que havia abandonado minha mãe comigo no ventre. Então cresci ouvindo, dela, os piores adjetivos sobre o homem que a abandonou. Cachorro, vagabundo, mentiroso, covarde e outros que prefiro não recordar, eram comuns ao mencioná-lo. Mas sempre procurei uma resposta para entender por quê papai havia abandonado a gente assim. Minha mãe dizia que até o seu sumiço (um dia depois dela comunicar-lhe seu estado interessante) tudo corria as mil maravilhas. Ele era romântico e cheio de planos. Um verdadeiro poeta sonhador!

Assim que me tornei adulta, iniciei minha saga investigativa. Comecei a juntar todas as peças do quebra-cabeça e a montá-lo vagarosamente. Consumira-me dez anos. Desde os registros policiais de seu desaparecimento até causos de antigos moradores que juram ter visto objetos não identificados em vários pontos de Paul no dia em que meu pai sumiu. Nada me escapava. Meu último grande achado foi encontrar minha avó. Viva e lúcida, morando em Nova Iguaçu - RJ. Ela me ajudou em muito a entender como funcionava a cabeça de seu filho. Sua fixação por seres intergalácticos. Seus livros e estudos sobre ufologia e cadernos e mais cadernos com anotações pessoais sobre o assunto.

De posse disso, voltei a Vila Velha para procurar em antigos jornais da época, o fenômeno dos objetos que iluminaram Paul naquela distante noite de 19 de abril. Gostaria de ter conversado mais sobre meu pai, com minha mãe antes dela falecer. Eu evitava o assunto, pois seu rancor cegava-a e não gostava de vê-la sofrer mais do que já havia sofrido na época. Eu entendo mamãe e gostaria de entender meu pai.

Imaginem aquela moça do interior, sem estudos, sem posses, perdidamente apaixonada pelo bem apessoado e bom partido: Mario Henrique Dantas Cavalcante, ser abandonada um dia depois de informá-lo, amedrontada e insegura, sobre sua gestação indesejada. Desde que foi convencida a ceder seu sonho de casar-se vigem, pela efêmera fome atiçada pela enorme lua que encobria seus corpos na deserta Praia do Pontal, só sentia culpa. Culpa que levou para casa naquele dia e que só foi menor que a descoberta da gravidez. Que só perdeu para o abandono de Henrique alguns dias depois. Primeiro a culpa depois o questionamento. Não podia acreditar naquilo, o homem que amava mais que qualquer coisa, não podia ter feito aquilo. Fugir justamente quando mais precisava de sua presença? Ali a culpa morreu e nasceu o ódio. Eu nasci nove meses depois.

“OVINIS em VILA VELHA - Mais de três dezenas de residentes naquela freguesia, nos arredores da cidade de Vitória, observaram, a partir das 8:30 da noite, e ao longo de mais de meia-hora, objetos metálicos, de forma ligeiramente esférica, achatada no topo e providos de cinco apêndices na vertical. Os objetos moviam-se ora lentamente ora com acelerações, chegando a descer à altura de um sobrado e acabando por subir e desaparecer entre as nuvens, não sem que antes o sr. Manoel Gomes tivesse feito quatro fotografias do artefato voador. Análises feitas nos Estados Unidos, por Richard F. Haines, consultor da NASA, por Jean Jacques Velasco no Centro Espacial de Toulouse e pelo astrofísico francês Pierre Guérin não permitiram, até hoje, identificar positivamente o referido objeto”.

Esta era apenas uma das dezenas de matérias que encontrei sobre o ocorrido naquele 19 de abril de 1975. Houve relatos de testemunhas afirmando que além dos objetos que riscaram o céu de Vila Velha, alguns seres estranhos foram vistos em vários bairros da cidade. E o mais impressionante: além de meu pai, pelo menos mais sete pessoas desapareceram nas redondezas naquela mesma noite. Mas para a polícia, cada um dos desaparecidos tinha suas próprias razões para fugir. Inclusive meu Pai. “Minha filha, assumir a responsabilidade de uma criança, não é para qualquer um, não.” Disse sarcasticamente uma ratazana na delegacia...

A pior coisa que pode existir para uma mulher é o abandono. Ainda mais quando nos sentimos frágeis e indefesas. E por mais que tenhamos conquistado espaços, tornando-nos independentes e donas de nós mesmas, queremos sempre ser amadas. Seja por nossos amados, sejam por nossos filhos, sejam por nossa família. A mulher sempre teve o espírito agregador. Sei como minha mãe sofreu com o abandono de meu pai. De certo modo, mesmo sem conhecê-lo, antes eu me sentia rejeitada e culpada também.

Mas agora eu estava convencida que meu Pai havia sido abduzido e que nos deixara contra sua vontade. E que estava vivendo em alguma distante galáxia experimentando a vida longe da Terra, triste por viver afastado de nós, mas com seu sonho de criança realizado. E que minha mãe também não tinha culpa por injustiçá-lo. Ficou parecendo que ele havia fugido. Todas as evidências levavam a isso. Mas agora está cristalino como água. Meu pai nunca nos abandonou. E eu sei, um dia ele vai voltar e me levar para junto dele. É só esperar, olhando as estrelas, como neste momento, aqui em cima desta velha laje em Vila Velha.

O Senhor do Deserto


O vento que devia passar dos 80 km/h, a quantidade de areia jogada contra a viseira do meu capacete, o cansaço e o calor que nenhum termômetro conseguiria registrar. Qualquer um desses fatores. Ou todos. Foram responsáveis por eu estar sentado agora em meu capacete com estes mapas que já não me dizem nada em pleno deserto líbio. Estamos em 1977. Meu nome é Thierry Sabine.

Desde pequeno tive certeza que era um realizador. Não me contentava em esperar que as coisas acontecessem. Eu tinha que ir buscá-las. Ficava ansioso com a necessidade de realizações. No esporte me encontrei, disputando cada prova com a intenção de vencer. Vencer. Conquistar o objetivo almejado. E quando encerrado, superar a mim mesmo. Quebrando meus recordes. Foi com estes sentimentos explodindo em meu peito aos 14 anos de idade que disputei vários e vários torneios hípicos, vencendo a maioria.

Mais tarde continuei atraído por cavalos. Mas desta vez, pelos cavalos de potência de um motor. A velocidade era meu desafio. A habilidade pessoal unida a uma poderosa máquina o meio de alcançar meus limites. E nada melhor para desafiar nossos limites que um rali. Onde homem, máquina, velocidade e um senso de direção que muitas vezes é intuitivo fazem do fim de cada etapa uma vitória.

Mas na verdade foi sempre o homem que me fascinou. Nossa capacidade de superação me surpreende. Vejam vocês agora, por exemplo, minha moto equipada com o que há de melhor em tecnologia, uma Yamaha XT 500 cilindradas, não agüentou o calor do deserto e não quer funcionar mais. Eu ainda estou aqui. Só. Eu, o sol, o céu e a areia. Caminhando há horas e não encontro, se quer, algum vestígio de civilização. Parece que estou em outro planeta, pois nada se compara ao ar quente deste lugar. Ao cheiro e ao som do vazio absoluto. Da textura e da imensidão do Deserto Ténèré.

Há algumas horas atrás, estava liderando o Rali Abdijan-Nice quando encarei de frente uma duna em movimento. Entrei dentro do vespeiro e cego pela areia e pelo desafio continuei acelerando a moto como um alucinado. Um louco que busca suas metas sem se importar com as conseqüências. Deveria ter sido mais prudente, esperado o monstro passar. Mas não... agora estou aqui... com pouca água, perdido, esperando socorro ou a morte.

Os dias passam, o Deserto me encara com um sorriso sacana. Meus pés já não se importam com o cansaço. Ardem na caminhada, autômatos. Não suo... não tenho mais líquido para expelir. Tive a impressão de ouvir o ranger de motores de meus concorrentes. Nada. Eram meus ouvidos fabricando o som que eu gostaria de ouvir. O Deserto tem dessas coisas...

Sem o menor sinal meu corpo desaba como um boneco sem vida na areia ardente.

...

Não sei quantas horas - ou foram minutos - fiquei desacordado. Mas fui despertado por um canto doce feminino, levantei meus olhos e vi ao longe algumas mulheres semi-nuas enterradas da cintura para baixo. Em sua direção parto e elas se movem dentro da areia como se nadassem. Na verdade elas nadam sim. São sereias da areia e vão me atraindo com seu canto para o coração do deserto. E eu sem resistência flutuo pelas dunas que agora ganharam um tom prateado com reflexos coloridos. Não pode ser verdade mas estou indo na direção de um imenso castelo, cercado de plantas que nuca vi de tão rara beleza. Pássaros de várias cores voam em torno do edifício. E um rio, com águas cristalinas, circunda a fortaleza. Engraçado, não sinto sede, só uma vontade danada de fumar.

Um clone de Saint-Exupéry me diz que o “Monseur du Desért” quer me dizer algumas palavras. Só posso estar morto - raciocino estupefato - Sou levado para uma grande sala, dessas que a gente só vê em filmes da Idade Média, parece uma igreja vazia, com vitrais que fazem o sol entrar como raios de arco-íris. E lá no final da imensa catedral, um jovem momo com um sorriso acolhedor. Sinto-me tão bem que nem me preocupo mais se estou vivo, morto, se aquilo é real ou delírio. Relaxo. Sento em enormes almofadas e aguardo ansioso a voz aveludada do simpático paquiderme.

“Fique tranqüilo Thierry. Você chegou onde nenhum homem da terra conseguiu nem mesmo vislumbrar. Aqui é onde se separam os homens dos meninos. E só a garra, a vontade, a raça fazem a diferença entre estar vivo ou morto. Você veio a Terra com uma missão. E esta Missão te levará a morte mas te dará a eternidade. A partir de agora sua vida está intimamente ligada ao Deserto. E você não conseguirá mais viver sem alimentá-lo e ao mesmo tempo desafiá-lo, mostrar ao mundo do que ele é feito e até onde podem ir os homens”

Nada mais precisou ser dito. Naquele momento nascia em meu coração um Rali unindo minha cidade natal com a misteriosa cidade de Dakar. Tendo o Deserto africano como o recheio desafiador no meio. Olhei nos olhos do majestoso monarca e agradeci pela iluminação. Nenhuma palavra mais foi proferida. Apaguei no imenso salão.

...

Acordei na cama de um hospital, com soro, oxigênio, enfermeiros e médicos cercando-me e dizendo-me que fui salvo por um avião que por acaso passava no local três dias depois. Que as equipes já haviam cancelado as buscas. Que era um milagre eu estar ali. E eu nem estava. Estava ainda no âmago do Deserto, conversando com o seu Senhor. Não sei se tudo não passou de uma alucinação pela falta de hidratação. Se foi apenas um sonho de um sono profundo provocado pelo imenso cansaço.

Mas nem isso importava mais. O rali estava completamente desenhado na minha cabeça. E este era meu novo e estimulante desafio. Em um ano conceber o Maior Rali de Todos os Tempos. O mais desejado e o mais temido. O Rali Paris-Dakar aquele que separa os homens dos meninos! “Um desafio para os que vão e um sonho para os que ficam”. Onde sobreviver, já é uma grande vitória!!!!!

quarta-feira, 9 de março de 2011

Para Início de Conversa

Amigos,
Aqui começa meu Blog. Havia registrado este nome há um tempos e nunca publiquei nada. Hoje, ressaqueado do carnaval aqui em Recife, resolvi botar para fora meus contos, meus poemas, meus desenhos, minhas fotos e outras viagens que surgirem. Quero utilizar o Zarayland também para manter meus amigos pelo mundo antenados sobre minhas andanças por aí.
Esta “primeira edição” conta com alguns contos que escrevi nos EnContos que surgiu lá em 2005 em Nova Iguaçu, assim:

“Há uns bons 13 anos atrás eu, Ricardo Siciliano, Duda Amaral, Marton Olympio e Odervan Santiago resolvemos nos reunir para desenvolvermos contos individuais, mas que orbitassem sobre um mesmo tema. Fizemos apenas uma edição desta idéia e, dos cinco participantes, apenas três escreveram: eu, Sici e Duda. Marton escreveu recentemente o seu conto, depois que relembrei nossa saga literária.
Anos se passaram, estávamos em 2005 e numa conversa com Lafayette Suzano, ele me relatou que se reunia com Mauro Marujo e Henrique Souza para lerem contos (de autores variados) toda terça-feira e me convidou para uma dessas leituras. Era genial, mas faltava algo que fui buscar lá no longínquo ano de 1998. Escrever nossos próprios contos e lê-los, todos com um mesmo tema. Isso tornava a leitura mais interessante visto que cada um daquele grupo (que foi crescendo com a entrada de Marcelo Peregrino, Alcides Eloy, Ivone Landim, Marlos Degani, Moduan Matus, Sil, Heitor Neguinhos, Sertório, Seu Gelson entre outros) tinha uma leitura completamente singular do tema.”

Das primeiras reuniões surgiram esses quatro contos:

BONDE ERRADO (27 de dezembro 2005) – A idéia era que todos escrevessem sobre um caso que se passaria num trem da Central sentido Japeri, onde uma confusão por conta de um vendedor de amendoim transformaria a viagem numa loucura,

O NÁUFRAGO (03 de janeiro de 2006) - Escrever sobre um naufrágio. Simples e fácil,

O MÉDICO E O MONSTRO (09 de janeiro de 2006) – Depois de perceber que um antigo funcionário do extinto IML de Nova Iguaçu, havia sumido e um ano depois se mudado para uma casa em frente ao antigo prédio da instituição, decidimos escrever sobre este cidadão: por que ele voltou para lá?

e VALENTINA (13 de janeiro de 2006) – Em frente ao Abracadabra (Pizzaria de Nova Iguaçu) toda noite quando bebíamos por ali, sempre aparecia um gato branco que ficava observando a gente. Decidimos escrever sobre este gato.

Nesta “primeira edição” publico também um poema de outubro de 2003 chamado “UMBIGO” que muitos conhecem. Escrevi este poema numa só tacada meio bêbado após ler um texto de Mario Quintana, onde ele afirmava que ninguém, jamais cantaria o umbigo posto que esta palavra – ao contrário do que ela batiza – seria uma palavra muito, muito infeliz.

Bem vindos ao meu mundo! Bem vindo a Zarayland!

Um beijo, um queijo e um beliscão de caranguejo!

Umibigo


Viva o umbigo e o seu entorno!
Buraco malandro, sempre discreto.
Espaço nada frio – sabe-se morno –
Calor do pavio chegando bem perto.

Viva o umbigo e as suas entranhas!
Labirinto para língua curiosa
Goza pequenas façanhas
Achando ali – já – a vida maravilhosa.

Viva o umbigo e a sua história!
Alimentando meu mergulhado ser
- Criatura viva, ainda irrisória -
Com pão e circo, grão e prazer.

Viva o umbigo e seu corte inciso!
Fonte da imaginação por não ser nada
E ao mesmo tempo ser escada
E estrada de tijolos dourados

Para o paraíso!

Valentina


Valentina sumiu quando eu tinha 12 anos. No dia em que o Brasil perdeu para Itália na Copa de 82. Foram minhas duas primeiras lições sobre perda. Valentina foi minha companheira inseparável numa época inesquecível. Uma gatinha branca, como o pires com leite que eu colocava todo dia de manhã para ela, dengosa e carinhosa como poucas namoradas foram anos depois, e com um olhar humano onde se podia saber exatamente o que queria só de olhar para suas grandes contas esverdeados. Ela sumiu, naquela tarde de luto para o Brasil, e um luto muito maior para mim.

Naquela época todos os meus amigos tinham cães, piriquitos, sapos... e eu tinha a Valentina. Minha irmã queria batizá-la de Snow Ball. Snow Ball não... ter gato já era coisa de viado, acha mesmo que eu ia colocar o nome dela de “Bola de Neve”? Não! Valentina era minha personagem preferida dos quadrinhos. Aquela fotógrafa sedutora que povoou minha imaginação, imortalizada pelos traços de Guido Crepax. E assim foi batizada: Valentina. Quando sumiu meus pais tentaram substituir o vazio por outros animais. Primeiro uma outra gata, mas a emenda saiu pior que o soneto. Era olhar para a imitação barata e chorar lembrando da minha insubstituível felina. Depois me deram toda sorte de animais de estimação que um Pet Shop podia oferecer. Nada supria sua ausência.

Valentina me seguia dia e noite. Onde eu fosse lá estava Valentina ronronando ao meu lado. Quando jogávamos bola no campinho, ela subia numa árvore e ficava a me observar, torcendo por mim, com aquele olhar profundo e doce. Na escola, bastava eu espiar pela janela, e advinha quem estava lá me esperando? Nossa amizade incomodava meu pai, que dizia: “Gato é bicho que não ama ninguém, ama é conforto e comida”. Ah Pai, então vai ter um cachorro bobo e babão. Eu sempre achei os gatos animais com personalidade, inteligentes e independentes. E isso me fascinava em Valentina.

Vários anos se passaram. A Copa do Mundo mais uma vez vem chegando. O Brasil conquistou duas copas depois daquela decepção de 82 e de novo é o favorito para o título. Eu, obviamente cresci, casei, tive filhos, mas não perdi minha adoração por gatos. Adoração entre aspas. Nunca mais tive um gato fisicamente. Minha adoração agora é mais pela imagem. Minha casa é toda decorada com motivos felinos. Dos lençóis aos copos do bar. Dos quadros na parede aos bibelôs que enfeitam toda uma estante. É gato pra cacete. Minha mulher não se importa. Diz que a casa fica bonita assim, meus filhos pedem um gato de verdade. Mas só eu sei como sofri com a perda da Valentina. Não quero expô-los a esta possibilidade.

Sexta-feira. Calor de janeiro. Meus amigos me convidam para uma cerveja depois do trabalho. Bar do Seu Antônio, dizem que é um boteco, mas que tem uns artistas de Nova Iguaçu que freqüentam lá... sei não... artistas de Nova Iguaçu? Chegamos as 21h. O Bar está lotado! Todos os bares em volta estão cheios. Olho em volta e não conheço ninguém. Sinto-me um estrangeiro. Mas meu amigo conhece uns poetas que nos convidam para sentar à mesa com eles. Beleza. A cerveja é bem gelada e o tira gosto farto. Alguma coisa começa a me incomodar, não sei o que é, uma sensação estranha de estar sendo observado, procuro nas mesas e não vejo ninguém me olhando. Esquisito. Continuo procurando e nada. Ninguém. Mas a sensação é nítida.

Um dos poetas percebe que eu estou distante. Eu explico o que sinto. E ele, sem pestanejar, me diz: “Deve ser aquele gato branco ali naquela sacada nos sacando”. Meu Deus! Meu coração dispara. A respiração pára. É Valentina!!! Mas como, Valentina? Ela não poderia viver tantos anos assim. Mesmo gastando suas 7 vidas. E eu nunca ouvi falar em reencarnação de gatos. Mas sei que é ela. Observando-me com seu olhar humano como sempre fez na minha infância. Valentina. Valentina. Não me contenho, saio da mesa meio abobado. Ninguém entende nada. Vou em direção ao prédio. Chamo seu nome, ela desce pulando aqui e acolá até repousar em meus braços. Volto para o bar e pergunto para um dos malucos: “Quem mora ali? Vocês conhecem esta gata há muito tempo?”. Um dos poetas diz que nem sabia que era uma gata, mas que ali mora uma gata de verdade de nome Lígia. “Eu preciso falar com ela!” “Com a gata?” “É! Com a dona da gata!”. Papo doido. Estava angustiando-me. O poeta disse que a gatinha branca, todo fim de semana se deita naquela varanda para ficar observando os boêmios beberem. É só começar a noite que ela aparece. E com seus olhos de farol registra cada movimento dos bares daquela área.

Vou até ao portão do prédio. Toco no número do apartamento. Atende uma voz de mulher. “Quem é?” “Eu gostaria de falar com a senhora a respeito de sua gata”. Já na sala de estar de Lígia (e que gata mesmo!!) com Valentina (que ela chama de Mimi) no colo ofereço um bom dinheiro por ela. Lígia sem muito apego ao bichano, aceita, meio sem acreditar que alguém pudesse fazer uma oferta tão alta pela sua vira-lata (deve estar bêbado - pensa). Desço feliz como - só me lembro estive - na minha mais tenra infância. Com Valentina nos braços e os olhos marejados. É tudo tão estranho como num filme de Felline ou num sonho. Fico olhando para a gata, sei que é a Valentina apesar de parecer bem mais jovem do que quando sumiu. Não quero entender. Os poetas me olham de um jeito esquisito. Como se me entendessem. Meus amigos não. Estão confusos. Preciso ir embora. Deixo uns trocados na mesa e vou embora.

Em casa conto para minha esposa toda a história. Ela me olha de modo mais estranho ainda. Mas se eu estou feliz, ela está também. No dia seguinte as crianças fazem a maior festa com a novidade peluda. Eu ainda sem acreditar em minha própria sorte, agradeço aos deuses egípcios. Valentina me olha enquanto se enrosca entre minhas pernas. Minha felicidade é assustadora. Só é menor que meu medo em perdê-la de novo. Eu não sei se aquela bola de neve felpuda é minha Valentina original. Não existem respostas lógicas para isso. Mas eu sinto que é ela de alguma maneira. Seu jeito de observar as coisas, seu olhar humano, seu afeto imediato por mim e por meus filhos, não sei explicar... o que sei, é que eu não quero explicações. E que se, na Copa do Mundo, o Brasil jogar contra a Itália de novo eu vou trancá-la numa gaiola. Ah vou...

O Médico e O Monstro


O Dr. Percival foi o primeiro a notar o retorno do, quase, espectro para o entorno do antigo IML. Da janela de seu apartamento, que tem vista (nem tão privilegiada assim) do prédio abandonado do IML e do Cemitério de Nova Iguaçu, percebeu que o velho, ex-funcionário do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, havia voltado após um ano de sumiço. Quando as atividades cessaram e todos foram, ou transferidos ou aposentados, desapareceram os rabecões, as ambulâncias dos bombeiros e o velho matusalém. Mas que surpresa não foi para Dr. Percival (notório observador do improvável) saber que a velha figura havia alugado uma casa (quase uma caverna de alvenaria) em frente ao seu funesto emprego. E o mais aterrador: continuava se vestindo como se ainda estivesse na ativa. Com sua indefectível galocha e seu jaleco branco.

Insuportável para Dr. Percival eram as perguntas que soavam como gongos em sua cabeça: “Por onde andou este sujeito? Por que voltou exatamente para cá? Por que o uniforme?”. Dr. Percival, antes um estudioso da filosofia, um grande interessado na loucura, especulava... especulava... mas queria respostas. Por ser médico, filósofo, não acreditava no sobrenatural, ainda que tenha lhe passado pela cabeça - assim que viu o ancião pela primeira vez de volta - a possibilidade de ser uma visagem, um fantasma que volta para onde passou a maior parte da vida... mas não, calma aí, haveria explicação mais palpável. E isso passou a incomodá-lo terrivelmente.

Passava de carro em frente à sua residência misteriosa com seu muro pintado de várias e várias cores e espichava os olhos lá para dentro, buscando respostas, conseguia mistérios... pouco via. Também não queria ficar taxado de bisbilhoteiro. Achou por bem parar com esta fixação. Ia para seu consultório e quando as perguntas começavam a minar como infiltrações, tentava pensar nos problemas de seus clientes, nas novas drogas poderosas, no novo equipamento de tomografia computadorizada, na planta que precisava de água, no vizinho que houve música alta todo sábado arrancando-o da cama mais cedo do que gostaria. Enfim, Dr. Percival tentava esquecer. Mas sua fascinação pelo inexplicável o fez tomar uma decisão: ia entrevistar o exótico vizinho e aplacar toda sua curiosidade investigativa.

Ia abordá-lo de manhã, quando ele saía para lavar a calçada com uma mangueira (lavar o necrotério era uma de suas funções naquela repartição) e alimentar, com ossos, os cães. E com decisão tomada passou a tarde e a noite em paz como há muito não conseguia. Atendeu toda sua lista de pacientes, jogou seu futebolzinho sagrado de quarta-feira, jantou, fez amor com sua esposa e teve uma noite tranqüila de sono profundo. A manhã chegou com seus primeiros raios de sol que enchiam a casa de vida. Dr. Percival levantou-se disposto e excitado como criança na manhã de Natal. Não contou o que ia fazer para sua esposa. No mínimo ia chamá-lo de maluco. De doente. Atirou-se na rua em direção ao desconhecido, mas titubeou: “O que vou falar? Com que autoridade ou desculpa vou abordar este homem sinistro?” Existem pessoas na qual a curiosidade pode matar. Dr. Percival era uma dessas pessoas. Se alguém falasse com ele qualquer coisa incompleta e deixasse um “deixa pra lá, esquece” era capaz de perturbar tanto o pobre-diabo com: “agora fala” “começou, termina” que ganhava no cansaço.

Viu a bizarra e misteriosa personagem na calçada, jogando água com a mesma disposição que lavava os azulejos brancos encardidos do extinto IML. A cachorrada disputava a tapas e mordidas um grande osso, ainda carnudo. Respirou fundo e encarou a empreitada: “Bom dia meu senhor!” um “bom dia” baixo, quase um grunhido foi o que ganhou como resposta. Fez mais duas ou três perguntas que tiveram respostas monossilábicas. O velho não era afeito a sociabilidade. Não era acostumado a pessoas puxarem conversa com ele. Nunca foi. Percebeu que Dr. Percival falava enquanto escaneava todo o local. Puxou a porta, impedindo qualquer visão do que havia lá dentro. Dr. Percival assumiu a derrota. Constatou que era impossível arrancar-lhe qualquer resposta mais elucidativa. Deu meia volta e voltou para casa. Puto. Com mais pulgas mordendo-lhe o cangote que antes. Tinha que encontrar uma maneira de descobrir o que rolava por baixo dos panos. E só havia um jeito. Entrar na toca do lobo. Tinha chegado a difícil conclusão. Ia invadir a bat-caverna e trazer luz a todas suas dúvidas.

Um homem íntegro; idôneo; exemplo para a sociedade; pai e marido invejado; médico respeitadíssimo; peladeiro mediano, mas esforçado; apostando todas suas fichas, arriscando tudo, somente para matar-lhe a curiosidade. Estava preste a invadir um domicílio. A cometer um crime em nome da fome que lhe consumia a alma há algumas semanas. “Que diabos quer este velho? Por que o desenterraram dos confins do inferno? Poderia ficar onde estava - no mundo esquecível dos anônimos - mas não, tinha que aparecer saído de um conto de Edgar Alan Poe. Transformando a minha vida em um filme, um espetáculo deprimente e decadente, expondo minhas maiores fragilidades e psicoses...” Mas já ciente de que só invadindo a casa do ex-servente conseguiria ter de novo a paz, partiu naquela madrugada para a inacreditável aventura.

Passavam das duas da manhã. Vestido todo de preto (influência de filmes de espionagem e ninja, que era obrigado a assistir nas insones madrugadas televisivas). Saiu a rua certificando-se que ninguém o observava. Correu com passos tão leves que se surpreendeu com sua graça. Escalou o alto muro do vizinho e numa vacilada quase estraga tudo. “Se caio agora fudeu!”. Galgou a lage da assombração e desceu por uma janela que ficava nos fundos da casa. Tentou olhar pelo basculante, mas era impossível. A escuridão tomava conta do barraco. Com as mãos molhadas de um frio suor, tentou girar a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou tateando o local, esbarrando vagarosamente em objetos dos quais não fazia idéia do que eram. Um medo filha da puta percorreu toda sua espinha. Um ventinho frio estranho - arrepiou-lhe a alma. Uma luz se acendeu.

Na manhã seguinte a esposa de Dr. Percival e alguns amigos procuravam por ele em hospitais e delegacias, houve até um que comentou “vamos no IML”, mas ninguém encontrou o homem. Sua mulher tentava entender o “por que” dele abandonar a família. A polícia esperava um pedido de resgate. Os amigos desconfiavam de suicídio e lembravam de histórias sem importância que ganhavam proporções e ligações que nunca existiram. Nunca mais ninguém ouviu falar de Dr. Percival.

Toda manhã o ex-funcionário do Instituto Médico Legal acorda, lava a calçada e dá ossos para os cães famintos da Rua Teresinha Pinto.

O Náufrago



Triste. Estava muito, muito triste. Como a voz de Nelson Cavaquinho. Arrasado. A pergunta é: “O que eu estava fazendo ali? Em pleno Reveillon de Copacabana?”. Não lembro como fui parar ali. O fato é que estava lá. Triste como um pierrô na quarta-feira de cinzas.
Estava em plena Avenida Atlântica cercado de gente feliz por todos os lados. Seus risos, suas gargalhadas, seus abraços efusivos, a felicidade maquiada em cada face, a música alta, o cheiro de bebida, fogos... tudo ali me angustiava imensamente. O mar de gente ia e vinha e eu não tinha para onde ir. Não conhecia ninguém. Não reconhecia em ninguém, ali, tristeza como a minha. Não! Não naquele momento de esperanças renovadas, de agradecimentos e confraternizações. Não! Eu estava sozinho. Sozinho e perdido como um náufrago. Procurando terra firme, ao sabor das ondas. Ondas, de gente, que não paravam de chegar. Só queria que todos desaparecessem, se calassem... mas na verdade era eu quem não deveria estar ali. Eu destoava do cenário. Como uma ilha em alto mar. Sozinha. Cercada de água por todos os lados. Precisava procurar abrigo. Fui para areia (ela entrou em minhas sandálias, arranhando meus pés) mas não encontrei refúgio ali. Continuava afogado naquele mar de pessoas. Um oceano branco. Tambores rufando. Velas. Mas não eram velas de um veleiro que pudesse me levar dali. O pedido de socorro na garrafa. Garrafa de vinho, vinho barato que bebi de uma só vez. Náusea. Vômito.
Meia-Noite. O mundo explode em cores, luzes, barulho e pólvora. Todos se agarram sem cerimônia. Ou a ceriônia seria o agarrar? Estou só. Vou para a água. Entre flores e Iemanjás nado. Nado, nado, compulsivamente nado. Passo por barcos, balsas, transatlânticos, nado, nado, nado para o mais distante possível de toda aquela festa da qual eu não pertenço. Sou da solidão. Nado, nado e a festa vai ficando para trás como Las Vegas vista do espaço. Nado, nado mais ainda. Tudo some. Estou na escuridão. No silêncio da madrugada. Em alto-mar. Longe de tudo e de todos. Estou em casa.

Bonde Errado





Ele estava ressabiado. Tinha lido no horóscopo do dia que teria surpresas desagradáveis. Mas o vício falava mais alto e foi invadir a Mangueira. Pegou o trem em Mesquita. Parador. Tinha que andar bastante para chegar na boca. Pedreira. Mas valia o sacrifício. Diziam que a de 20 estava um veneno. Vinha há dias só cheirando merda. Teco batizado com pó Royal. Hoje não. Foda-se o horóscopo. Ia cheirar coisa fina. Em homenagem ao nariz de piche do Cartola. “Ouvi dizer que aquela prótese era para substituir o nariz que perdeu de tanto dar fucinhada”. Credo. Pensou. Sabia que era viciado, ainda que não precisasse da dita cuja para viver. Mas dava cada vontade. O nariz coçava só de pensar...

Chegou na boca. Tudo limpeza. “Vem nariz! Vem Nariz!” Gritava o traficante. Moleque novo. 14 anos no máximo. “Olha a de 5! Olha a de 5”. Nada . Queria pegar um pesinho. “Onde é que está a de 20”. Pegou três de vinte. Camuflou na meia. Parou numa birosca, ainda no morro, e tomou umas cervejas. “Espero que a saída esteja limpeza”. Estava. Foi andando em direção à estação. Tudo muito tranqüilo no caminho. Já a estação estava cheia. Eram seis horas. “Caralho! Trem lotado!”. Dito e feito. A lata de sardinha fervia. Empurra daqui, empurra dali. Encosta numa das portas e fica. O flagrante na meia não o deixava relaxar por completo. Achava que todos estavam olhando-o. Não tinha muita experiência em invadir boca. Estava ansioso. Inquieto. Suava. Mas quem não suava naquele inferno?

As viagens de trem, normalmente, são mais rápidas que as de ônibus ou de carro. Ainda mais na hora do rush. Engarrafamento é um dos grandes tormentos do homem moderno. Mas em qualquer país civilizado, é notório que, os meios ferroviários são a grande solução para o transporte de massa. Em várias cidades da Europa, as pessoas vão de carro até as estações, e aí sim, fazem a viagem maior de trem, metrô, bonde ou seja lá o que for. Mas aqui no Rio de Janeiro é foda. Trem: superlotado, Metrô: não vai para todos os lugares. Uma merda!

Dois policiais entram em seu vagão. Gela. Baixa a cabeça. Teme se entregar com os olhos. “Fica frio! Eles estão aqui como passageiros quaisquer”. Espia de rabo de olho. Parece que um está olhando para ele. Abaixa rápido a cabeça. Reza. Mãos suadas unidas em orações de arrependimento. Méier. Falta muito. Mas a viagem é tranqüila. Todo mundo cansado. Todo mundo deprimido. Há um falatório generalizado, mas é quase como se fosse um grande silêncio. Um silêncio ruidoso. Pataco-Pataco.

“Vamos lá lata velha!”. Mas pensa também que se tudo continuar assim, nada irá acontecer com ele. Cascadura. O silêncio barulhento é quebrado por uma voz estridente de mulher. Uma velha. Preta. Grita e segura um vendedor. Acho que de amendoim. Baixa um santo na mulher. Um crente quer exorcizar. O tumulto começa. Estouro de boiada. Lembra do horóscopo. Olha os policias. Um deles tira a arma e investe na multidão. O outro o encara. O trem pára na estação. Já tinha gente saindo pelas janelas antes. Ele é meio que empurrado para fora. Cai no chão. Se protege com as mãos para não ser pisoteado. Escapa. O trem não prossegue viagem. Os policiais, agora com ajuda da polícia da Via Férrea, tira alguns passageiros do vagão e os mandam deitar. Ao lado dele. Pensa: “Fudeu”.

Os policiais começam a revistar um por um. Ele já se imagina preso. Sua família sabendo. Sua mina acabando tudo. Seu patrão o demitindo. “Horóscopo filho da puta”. Não se culpava. Era tudo culpa dos astros. Ou do maldito tijolinho de horóscopo no jornal. O policial que o encarava dentro do trem o reconhece entre os outros e diz: “Libera este aqui. Ele não tem nada a ver com a confusão. Estava longe.” Não acredita. Não sabe se fica ali para agradecer ou desaparece o mais rápido possível. Escolhe a segunda. No ônibus Cascadura / Nova Iguaçu da Viação Penha agradece a Deus e promete que nunca mais vai cheirar em sua vida. Claro, depois daqueles três papéis de 20 que estão na meia. E que não vê a hora, conta os segundos para abri-los e mandá-los para dentro... Mas aqueles serão os últimos. Os últimos...