quarta-feira, 27 de julho de 2011

Edição Especial: EnCONTOS IV - A Última da Mesa

Zarayland de Férias! Mas durante estas férias aconteceu o IV EnContos vs PE e foi muito bacana reuinir a gang no Banquete no dia 20 de julho de 2011. Denise Dantas me fez uma surpresa e tanto. Fui ao banheiro e quando voltei todos estavam vestidos com a “farda” da Zarayland. Fiquei emocionado. Agora, tenho uma lista de amigos pedindo uma camiseta. O que está sendo providenciado.
 
Neste IV EnContos aconteceu uma coisa muito curiosa. Todos os contos foram escritos por participantes de fora de Recife ou Pernambuco. Ainda que eu, Denise e VanSan moremos aqui, somos respectivamente do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Sergipe. Cadê você escritor pernambucano? O próximo tema será “NA PONTA DA LÍNGUA” e acontecerá no dia 17 de agosto de 2011. Vamonessa?
 
Os contos que seguem aqui foram inspirados pelo tema: A Última da Mesa ou O Último da Mesa, porque? Já repararam que quando pedimos uma porção de petisco em algum bar / restaurante, assim que chega a guloseima é um ataque, mas que sempre sobra a última ou o último pedaço no prato. Ninguém quer pegar a última da mesa, não sei se por vergonha (pois todos estão de olho naquele último pedaço), não sei se por educação: "Ah, deixarei para outro que esteja com mais vontade ou fome". Só sei que fica lá, as vezes, até o garçom levar.

Até o próximo ZARAYLAND que deve sair no início de Agosto com muita coisa nova e muita coisa acumulada. Aguardem...

Um beijo um queijo e um beliscão de caranguejo!

Zaray

A Última da Mesa

Sábado é o dia que mais gosto. Sábado à noite então... Principalmente hoje, uma noite agradável com a lua brilhando, enfeitando o céu estrelado.

Na verdade não tenho nada de especial para fazer, vou sair mais uma vez com meus amigos para beber. Só que hoje eles vão levar umas garotas que conheceram e estou torcendo para terminar a noite com uma delas.

Ah, Desculpe! Esqueci de me apresentar, sou Eduardo, os amigos me chamam de Edu, tenho 27 anos, moro na cidade maravilhosa, sou gerente de uma loja, ganho o suficiente pra não esquentar a cabeça com dinheiro, sou solteiro e pretendo ficar assim até... Bem, até encontrar uma mulher que me ature... E que me faça querer aturá-la também...

O telefone tocou, só pode ser o Thiago, meu amigo. Ele sempre me dá uns toques quando tem alguma garota me paquerando: “Ô Animal, se liga a mina tá dando molinho pra tu.” Às vezes eu sou um pouco distraído. Bom, ele já esta lá no bar me esperando.

Demorei 20 minutos para chegar até aqui e agora estamos esperando o Queiroz, um outro grande brother, que foi buscar as meninas. Estou meio impaciente, não pela chegada das garotas, mas faz um tempão que pedi uma porção de coxinhas e nada. Hoje foi um corre-corre pra mim e não comi nada e agora meu estômago está grudado nas costas.

”Ah!! Até que enfim!” – Disse Thiago! Também pensei que eram as coxinhas, mas não, era o Queiroz que acabara de chegar com as meninas.
E que meninas! Ele não mentiu, elas eram maravilhosas! Adoraria terminar minha noite com uma delas!

Conversa vai, conversa vem, me interessei por uma garota em especial. Não era o tipo mulherão, mas tinha um jeitinho especial. De repente rolará até namoro... Meu estomago dói! As coxinhas chegaram e eu não consegui nenhuma, sobrou a última da mesa que eu não vou pegar, não consigo, sei que estão todos de olho nela, que estou com a maior vontade de pegar, mas não vou!

Já tenho tudo em mente, vou convidar a gatinha para a gente ir a outro lugar, um lugar melhor que essa birosca que só tem coxinha de galinha para se comer, para ficarmos a sós. Me perdi varias vezes olhando pra ela , olhava para suas formas e desejava que estivéssemos somente eu ela nessa mesa , mas ai despertava e voltava a conversa com a linda amiga do Queiroz que também me encantava. Ainda mais agora que as amigas foram embora e ela insistiu em ficar. O Thiago e o Queiroz vão ficar chupando dedo... Vou ao banheiro antes que eu não agüente mais e pegue essa última coxinha. Ainda dou uma olhadinha nela pensando: “como ou não?”

“Vai Mané, é sua!” Disse-me Thiago antes que eu me levantasse. Percebi que todos ouviram, ela deu um sorriso. Será que dei tanta bandeira que estava morrendo de fome assim? Faço uma cara de desentendido pra disfarçar. ”A última da mesa Mané... é sua”. Fiquei todo desconcertado, Thiago às vezes é tão inconveniente! A menina fingiu que não ouviu, tenho que disfarçar.

”Eu não como qualquer porcaria que nem sei de onde veio não, Thiago”. Acho que impressionei, pois ela arregalou os olhos. Deve ter percebido que vou levá-la para um lugar bem mais bacana para comermos coisa bem melhor.

Levantei e fui ao banheiro.

Quando voltei Thiago estava sozinho na mesa me olhando com uma cara assustada. ”Aconteceu alguma coisa?” – indaguei.

“Vem cá, tu pirou Edu? Comeu criança quando era merda? Por que você fez isso?” Antes que eu respondesse ou perguntasse qualquer coisa ele me interrompeu falando: ”Se você não queria deixava pra mim! Maluco, eu nunca vi você dando tanta atenção para alguma garota como você deu para essa e depois a chama de qualquer porcaria?”

Fiquei paralisado. Baixei a cabeça. Vi a coxinha e a enfiei de uma vez na boca.
“Não come isso, frio é horrível!” – advertiu-me Thiago.

Já falei que odeio sábado à noite?

Denise Dantas
Vilha Velha - ES / Recife - PE

Testemunha Ocular

Lá estava Erick olhando fixamente para a azeitona no prato. Certa vez ele foi visto abraçando um palmito em um bar de subúrbio, mas essa é outra história. “Coisas de maluco”, pensou. “Não!!!” Refez rapidamente o pensamento: “Coisas de apaixonado!!!” Antes de terminarem o aperitivo Suzana terminou com ele.

Simplesmente disse que não dava mais e foi embora, deixando-o sozinho, aliás, com a última azeitona do prato. Aquela azeitona o remetia ao passado. Quantos momentos felizes passaram juntos comendo aperitivos nos bares. Perdeu a conta das inúmeras vezes que dividiram uma porção de azeitona. Era um dos itens mais baratos do cardápio.

Suzana bebia muito mais que ele. Ela sempre voltava carregada para casa. Depois da Lei Seca, Erick parou de beber por causa dela. Amar é isso, justificava-se, fazer sacrifícios para o bem estar do outro. Suas lembranças sucediam-se num frenesi nostálgico. Aquela azeitona, ao mesmo tempo em que o levava ao passado, lembrava-lhe que tudo havia acabado. Era injusto. Estavam juntos há cinco anos e ele nunca desconfiou que algo estava errado. Não fazia tanto tempo assim que ela expressara o seu amor num quarto de motel, lhe presenteando com uma cueca vermelha de sex shop, daquelas com zíper e detalhes em couro. Quem, em vias de terminar um namoro, daria um presente desses? Ou seria exatamente o contrário?? Remoia Erick. Talvez, Suzana precisasse de algum estímulo adicional. Mas ela não podia imaginar que ele ficaria tão ridículo com aquela sunga. Vai ver que foi por isso que ela desistiu. Lamentava-se profundamente. Precisava parar de pensar nela. Estava se torturando e, francamente, ela não merecia.

Quando se deu conta, havia se tornado o centro das atenções no bar. As pessoas o olhavam penalizadas ao vê-lo debruçado sobre a mesa, ás lágrimas, conversando com o aperitivo. Respira Fundo, se recompõe e pede a conta. Lembra que ela ainda saiu sem pagar a sua parte.

Levanta-se encabulado diante daqueles olhares intrometidos e se detém por alguns instantes. Não podia deixar para trás a única testemunha ocular de sua decepção amorosa. Olha para os lados, como se estivesse prestes a cometer um delito e, aproveitando um momento de privacidade, numa ação digna de um ninja, enfia a azeitona no bolso e sai apressado. Poderia parecer estranho, mas ele e aquela azeitona ainda tinham muito que conversar.

Odervan Santiago
Rio de Janeiro - RJ

A Última da Mesa

- O quê? O prazo é hoje, 23h! Como assim?

Uma pilha de coisas lhe esperava. Já eram 20h, ou 8 da noite, se preferir. Olhava em volta de si e via papéis por todos os lados. Anotações importantes, outras caducas, sem valor algum. Teclando, teclando, teclando. E o jantar? Uma puta-fome! E como iria aprontar aquela história até às 23h sem comer nada? Mas isso era o de menos, frente ao monte de coisas que precisavam ser feitas antes.

- Porra de prazo, também! Tudo em cima, tudo pra ontem, inclusive isso!

Realmente tinha muitas outras coisas para fazer antes de começar sua história. Passara o dia envolto em projetos, textos, cronogramas, idéias, cansaço e altas doses de MSN. Conversara com SP, RJ, ES, e quem mais chegasse, tudo ao mesmo tempo. Seu trabalho agora era assim, da sua casa organizava tudo. Home Office, como diriam os gringos. Não poderia parar. A hora estava passando, a pilha de coisas parecia não diminuir. E a porra da dor de cabeça! Tinha que aparecer logo agora, nessa correria danada?! Lembrou da mãe: “meu filho isso é fome, vai jantar”, ela diria se estivesse ao seu lado. “Não dá mãe, tenho que entregar uma porrada de coisas e não estou nem na metade, e ainda quero escrever um conto”, diria ele na réplica.

- Prazo do cacete! Por que até às 23h?

Mas não adiantava reclamar. Ele sabia que tinha deixado pra última hora. Afinal, existem tantas outras coisas mais importantes, não é mesmo Seu-Zé-Mané?! Ganhar dinheiro, por exemplo: isso sim vem primeiro, depois você se diverte escrevendo suas bobagens. Primeiro o pão, depois o circo, meu camarada... e se der tempo! Mas nunca dava. Antes termine tudo o que “seu chefe” mandar, depois vai escrever seus “continhos”. E tem mais uma coisa.... ok, ok, deixemos de pensamentos inúteis, o prazo é até às 23h, senão não será publicado. E tanta coisa pra fazer antes. Só de planilha Excell umas 6 abertas ao mesmo tempo. Várias pastinhas de arquivos pipocando na tela do computador. Arquivos Word incontáveis.

- PQP! Tenho que fazer isso tudo antes de começar meu conto! Não vai dar tempo, só tenho até às 23h pra entregar, senão ZaRay não vai aceitar. Espera aí: como assim? Aquele cabra-safado vai me barrar? Talvez fosse mesmo. Saudade do Raymundo. Moleque-travesso que me ensinou um bocado de coisa bacana. Inclusive a não levar as coisas tão a sério. Mas o que eu faço agora? Ainda tenho uma porrada de coisas pra fazer, pra entregar, pra organizar, não posso parar pra escrever meu conto. E ele tá ali, bonitinho, sobre a mesa, rascunhado, debaixo de tantas outras folhas “mais” importantes. Outra vez não vou participar, meu conto não será publicado. Porra, Raymundo, que merda de prazo é esse? O que eu faço? O-que-eu-fa-ço? Acho que vou desistir, não vai dar mais tempo de fazer e entregar meu conto. É isso aí, não tem mais jeito. Tenho tantas outras coisas pra fazer, melhor nem pensar nisso. Melhor cuidar da vida, voltar pros projetos, planilhas, textos inúteis, bobagens mercadológicas, etc, etc. Isso é o que importa, deixa de drama. É isso! Dane-se o conto, não tem jeito!

E sob a imensa pilha de papéis, a última folha foi sufocada para sempre.

Ricardo Siciliano
Rio de Janeiro - RJ

A Última da Mesa

Na mesa havia uma mulher robusta, com seus cinquenta e poucos de idade, branca, fumante, aparentemente uma dessas pessoas sérias. Não mal-humorada, apenas séria. Seus cabelos tinham um tom preto-índio. Havia chegado com algumas pessoas, mas estava sozinha naquele momento. Eu a examinei de longe por um bom tempo. Sabia o que tinha que fazer, mas analisei as fichas novamente antes de apostar tudo na minha decisão. Aquela seria uma noite memorável.

Eu, profundo admirador do corpo feminino, ao ver aquela pele alva, coberta por fino tecido, com seus traços e sinais, respirei fundo e pensei: esta será a última vez. Estava cansado de passar as noites em claro. Precisava de um tempo. Velejar talvez. Espairecer...

Meu amigos não gostavam muito da idéia. Uns achavam precipitado demais, outros pensavam que eu era maluco em abandonar minha especialidade. Afinal, havia desenvolvido uma técnica própria e eles me viam como um exemplo a ser seguido. Porém o tempo havia mastigado meu corpo e memória e eu já não era aquele jovem audacioso que perseguia a risca seus objetivos. Estava cansado.

Fiquei em silêncio por alguns momentos. Ajustei meus óculos com a ponta dos dedos, aprumei a roupa e caminhei até ela. Lembrei da minha primeira vez. Estava tão nervoso e trêmulo que tropecei ao pé da mesa e por pouco não derrubava tudo no chão. Quase estraguei tudo. Pensei algumas vezes em desistir, mas adorava ter a capacidade de mudar o curso da vida das pessoas. E aos poucos me tornei um dos melhores da minha área.

Ao chegar perto dela, toquei seu rosto. Quis memorizar cada detalhe daquele momento. Esperava que a partir dali nossas vidas mudassem radicalmente. Seu semblante era sereno. Embora meu coração palpitasse forte, estava calmo e seguro. Verifiquei novamente se não faltava nada. Olhei para todos ao redor, respirei fundo e comecei a cirurgia.

VanSan
Aracaju - SE / Recife - PE

Da Teoria à Prática

Não sei quem foi que disse que “quem ri por último, ri melhor”. Só sei que, quando cheguei para a palestra sobre “Dominantes e dominados”, já estava no fim do breakfast.

Servi-me de um “cafezinho” e enquanto dirigia-me ao único pedaço de um bolo de chocolate, que estava à mesa, outra pessoa se adiantava, também, para pegá-lo. Quando percebeu a minha intenção, recuou. Eu, por elegância, fiz que não queria. Talvez, por educação, ela o recusou. Nisto, chega uma terceira pessoa, que sem vergonha nenhuma, pegou o pedaço de bolo e saiu comendo-o, não nos deixando chance de reação. Rimos muito e depois da palestra rimos mais ainda.

Lembrei-me disso agora, pois ela está com “desejo” de bolo de chocolate e vim à padaria correndo, quando, a uma certa distância, avistei na prateleira somente uma embalagem da de chocolate (a outra tem sabor baunilha), e bem à sua direção, um outro consumidor surgindo. Só que agora é diferente: eu vi primeiro, ninguém tasca e ela é minha!

Sil
Nova Iguaçu - RJ

A Última da Mesa

A Mesa sempre tinha uma história para contar. Como falava! As Cadeiras sempre esperavam que ela se manifestasse para dividir os ocorridos. “Sabe a última da mesa?”. Todos queriam ouvir. Quando o bar fechava, elas empilhadas aguardavam ansiosamente o que a Mesa tinha para contar.

Como aquela história, da vez que chovia cântaros e o bar estava lotado, abarrotado, as Cadeiras eram disputadas a tapas pelos bebuns contumaz. Quando um grupo de quatro pessoas conseguiu sentar ao seu redor, ela ouviu o Português perguntar: “Uma cerveja e quatro copos?” No que um dos frequentadores o corrigiu: “Só três, não estou bebendo!”. E o patrício, grosso como papel de embrulhar prego resmungou: “Não tá bebendo? Num dia de chuva desses? Com o bar cheio. Então vai para a casa e dá lugar para quem quer beber!”. As risadas das Cadeiras ecoaram pelo bar já fechado.

As Cadeiras sempre queriam ouvir o que a Mesa tinha para contar. Por estarem embaixo, sufocadas pelas nádegas nunca ouviam o que se passava lá por cima. Os únicos sons que capturavam bem, eram dos flatos disfarçados que só elas podiam ouvir na barulheira do bar. A Mesa não. Sempre tinha uma novidade.

Teve aquela vez em que o cidadão chegou no bar e pediu uma sopa. Perguntou o preço para o Portuga que respondeu: “Seis Cruzeiros”. “Que roubo!!!” – Retrucou o freguês. Seu Manoel Como sempre, com sua polidez mandou: “Se não tem dinheiro para que perguntou? Não toma então...” Mas o pinguço não se fez de rogado. Tirou três notas de dois reais e chafurdou na sopa. Mexeu, mexeu e começou a tomar. Às vezes uma das cédulas vinha a sua boca e ele a retirava, esticava e colava nos azulejos do bar. Ao fim desta nojeira, disse ao Português: “Taí, seus seis reias!”

Ohhhhhhhhhh!!!!!!!

Nem sempre as histórias da Mesa eram engraçadas. Algumas vezes eram histórias de dor, de separação, de briga. Outras, discussões chatas de políticos chatos ou de pseudos intelectuais. Algumas eram poéticas e líricas. Outras amargas e cheias de ódio. Histórias de memórias vividas com intensidade numa outra época. Histórias que ainda iriam acontecer. Segredos e mentiras. Declarações e conversas fiadas. Piadas e teses de mestrados. Tudo. Tudinho a Mesa ficava sabendo antes e compartilhava com suas amigas.

“Mesa que é mesa não guarda segredo” dizia alto em seus tantos anos de serviços prestados a comunidade boêmia da cidade. Trabalhara em bares históricos da Lapa e muitos ilustres haviam sentado ao seu redor e feito-a de pandeiro em rodas de samba notívagas. Grandes canções nasceram ali. Orgulhava-se ao desfilar uma lista que ia de Noel Rosa e Wilson Batista a nova geração, como Marcelo D2 e Seu Jorge. Mal ficava num antiquário ou num brechó que algum dono de bar já a comprava novamente. Tinha estilo. Quase não ficou parada e sem histórias para contar neste século e tal de labuta.

Ao contrário das Cadeiras que se quebravam rápido e logo eram substituídas, a Mesa era pura resistência ao tempo. Mas estava sempre meio bêbada, pois mesa de madeira não se seca. Absorve. E foram tantos vinhos, cervejas, conhaques, caipirinhas, caninhas, whiskys, que nossa heroína não tinha um cheiro. Tinha um blend etílico inconfundível.

O velho Lusitano fora visitado pela Vigilância Sanitária e obrigado a reformar seu estabelecimento. Trocar os azulejos. Colocar piso antiderrapante. Balcão com vedação térmica. Nova cozinha inoxidável. E novas mesas. PLÁSTICAS. “Para melhor assepsia”. Nossa amiga fora aposentada. A princípio ficou triste como um piano mudo num canto da sala. Depois se lembrou de tudo que já havia vivido e sorriu como quem sabe do dever cumprido. E antes de ir embora no carroceiro, cheio de tralhas, a pedido das cadeiras e até das mesas novinhas e virgens plásticas – que conheciam sua fama secular - ainda teve espirituosismo para contar mais um causo. Mais uma das inúmeras e maravilhosas crônicas vividas por ela. E foi, de fato esta, a última da Mesa!

Cézar Ray
Nova Iguaçu - RJ / Recife - PE

Traição

Foi a primeira a saber de tudo.
Por um segundo ficou sem fôlego.
Um terço nas mãos e uma oração dita aos céus.
No quarto coroas de flores, velas e as carpideiras.
O quinto dos infernos era onde ele devia estar.
O sexto sentido já tinha lhe avisado disso...
Do sétimo céu a queda nunca cessa.
Ou oito ou oitenta... A vida é assim.
A morte mais simples.
A novena mastigada entre os dentes miúdos.
Era a última da mesa.

Marton Olympio
Rio de Janeiro - RJ

Comemoração versus Desilusão - O Pedaço -

Daqui deste ponto, neste exato momento, faço saber a quem interessar-se possa que a mistura de comédia e drama que vou narrar para os senhores não está começando agora. Acreditem todos, há algumas horas neste mesmo dia ela teve um começo tragicômico quando começava a se desenrolar no interior deste estabelecimento comercial e era protagonizada pela mesma personagem que volta a este palco a fim de representar novamente o seu papel depois da frustração do primeiro ato. Desta vez vem com algumas modificações no figurino pra não ser reconhecido.

Afirmo a todos vocês que passadas poucas horas entre o primeiro e este segundo ato, a história acabou se repetindo em virtude de dois casais amigos de infância marcarem reencontro aqui neste local, depois de longa separação por motivos profissionais. Criados na mesma rua desde o nascimento; estudaram nos mesmos colégios; se divertiram com as mesmas brincadeiras e freqüentaram as matinês do único cinema do bairro, um dia tiveram de se separar temporariamente. Porém, a afinidade era tanta que cada qual achou seu par dentro do próprio grupo, casando-se ente si. A partir daí tomaram rumos diferentes em busca de suas realizações pessoais e profissionais. A vida continuava e eles trocavam correspondência através de cartas e telegramas que, com o acúmulo cada vez maior dos afazeres cotidianos de cada um, foram diminuindo com o passar dos dias. Contudo, as lembranças nunca se apagaram das mentes dos quatro amigos, que prometiam a si mesmos que voltariam logo que chegasse o momento. Aí sim, promoveriam uma grande confraternização pra comemorar a ocasião e recuperar o tempo perdido. Alguns poucos anos decorreram e eles voltaram pra passar merecidas férias em família. Tudo combinado para o esperado dia do reencontro que seria realizado com toda a pompa na mais luxuosa churrascaria da cidade.
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Chegando ao restaurante, local onde haviam marcado para a esperada reaproximação, aconteceu grande e calorosa confraternização por parte dos quatro amigos que durante anos só se correspondiam através dos serviços prestados pelos Correios. Após a efusiva recepção, entraram no estabelecimento e sentaram-se à mesa caprichosamente ornamentada para a ocasião. Tomaram alguns drinks; brindaram à ocasião com vinhos das melhores safras e águas minerais das melhores fontes; conversaram durante horas. Experimentaram guloseimas avulsas como entrada enquanto aguardavam o momento mais propício para degustar o soberbo e significativo jantar. Após todos os brindes e vivas, finalmente chegou o prato principal, servido pelo engomado garçom, vestido a caráter trazendo nas mãos uma bandeja de prata com as iguarias solicitadas. Dentro da bandeja estavam os selecionados bifes passados ao ponto, com as batatas coradas, pedido feito pelos quatro novos clientes. A bem da verdade é bom que se diga que este era o prato preferido dos quatro, quando, muitas vezes, saiam para um bate-papo informal regado com bons vinhos. Dispensaram a presença do garçom na hora em que ele ia servir a comida. Sentiam-se em família e cada qual cuidaria de se servir sem a presença de um estranho. Contudo, ao contrário do tempo em que ainda eram jovens e talvez até um pouco inconseqüentes, naquele momento todos queriam demonstrar educação e finesse. Um após o outro apanhou o seu prato e transferiu pra ele um pedaço da carne macia e suculenta, mas teve o cuidado de pegar o menor pedaço como sinal de refinamento e amadurecimento pessoal.

Depois que os quatro amigos já tinham se servido dos bifes e das batatas e de tudo o mais, foi que notaram que na bandeja só havia sobrado um exuberante pedaço de carne. Que o pedaço de carne remanescente dentro da bandeja exposta sobre a mesa era maior, mais encorpado, mais carnudo, mais volumoso que os demais. Todavia, era apenas uma peça solitária dentro daquela travessa. Quem entre eles teria coragem de espetá-lo e colocá-lo no prato depois de comer o que já tinham pegado? Pensavam, mas nada diziam. Todos sabiam que em outros tempos qualquer um deles cometeria o ato com toda liberdade e sem nenhum pudor. Um dos amigos pensou baixinho pra ninguém ouvir. Ia propor o desmembramento do bife em quatro partes, com régua de alta precisão, mas o restaurante era fino demais e ele se recolheu em seu intento. Terminado o jantar, o garçom trouxe a conta e aproveitou o ensejo pra recolher o pouco que restou do lauto jantar. Contudo, foi com profundo sentimento de culpa que os ocupantes da mesa viram quando o garçom levou de volta para a cozinha aquele vigoroso pedaço de carne medindo um palmo de comprimento, u’a mão fechada de largura e três dedos de altura e ainda fumegante. Foi retirado intacto em cima da mesma bandeja que o levou para a mesa juntamente com os outros parceiros. Por sua vez, bastante consternado, ele, o bife, sabia que só o cozinheiro e ele estavam cientes do que estava acontecendo.

Pobre bife. Era a segunda vez que ele ia para a mesa do cliente, impecavelmente arrumado e pronto pra ser degustado e acontecia o pior. Duas vezes num só dia era demais pra ele. Primeiro foi logo no início do expediente, quando aquele grupo de rapazes e moças que - sem nenhuma cerimônia - pediram algumas porções de carne mal passada e que viesse disfarçada em bife à Cavalo, carregando um ovo frito na garupa. O grupo comeu até não mais poder, dando preferência aos outros bifinhos e não a ele. Por fim, por estarem saciados não mexeram naquele voluntarioso pedaço de carne que ainda se conservava inteiro e intacto. Por causa desse pequeno detalhe, ele, o bifão, voltou pra cozinha sem cumprir a sua nobre missão. Inconformado, retornou pra cozinha sangrando por dentro por ter sido preterido. Diante de tudo que acontecera naquele dia, o pedaço de carne estava preocupado. Mas, quem pode saber? Talvez ainda aparecesse um cliente retardatário, desejoso de um bom churrasco bem passado na grelha e ele fosse o escolhido. Era o primeiro da fila, porque já estava semipronto. Já havia sido queimado duas vezes naquele dia. O restaurante ficava à disposição do público até altas horas da madrugada, por isso ele tinha esperança de que algum freguês fortuito aparecesse e permitisse que ele pudesse ser novamente preparado a caráter pra sair triunfante pelas mãos do Maître em direção ao refeitório e ao prato de algum cliente retardatário, e, se a sorte desta vez fosse favorável, bastante faminto. Desiludido, mas esperançoso, ele, o bife já meio rodado, sabia que se não aparecesse uma terceira chance ainda naquela noite, mesmo sendo considerado por unanimidade como representante de uma das partes mais nobres das carnes, logo na manhã do dia seguinte seria colocado num “triturador” e transformado em “substrato”, também denominado carne moída. Viraria almôndega e com toda certeza iria preencher os espaços dentro das marmitas que humildemente, disfarçadas em quentinhas, saiam escondidas através da porta lateral daquela luxuosa churrascaria de fama e prestígio internacional.

Gelson Maciel Amaral
Nova Iguaçu - RJ