quarta-feira, 27 de julho de 2011

Comemoração versus Desilusão - O Pedaço -

Daqui deste ponto, neste exato momento, faço saber a quem interessar-se possa que a mistura de comédia e drama que vou narrar para os senhores não está começando agora. Acreditem todos, há algumas horas neste mesmo dia ela teve um começo tragicômico quando começava a se desenrolar no interior deste estabelecimento comercial e era protagonizada pela mesma personagem que volta a este palco a fim de representar novamente o seu papel depois da frustração do primeiro ato. Desta vez vem com algumas modificações no figurino pra não ser reconhecido.

Afirmo a todos vocês que passadas poucas horas entre o primeiro e este segundo ato, a história acabou se repetindo em virtude de dois casais amigos de infância marcarem reencontro aqui neste local, depois de longa separação por motivos profissionais. Criados na mesma rua desde o nascimento; estudaram nos mesmos colégios; se divertiram com as mesmas brincadeiras e freqüentaram as matinês do único cinema do bairro, um dia tiveram de se separar temporariamente. Porém, a afinidade era tanta que cada qual achou seu par dentro do próprio grupo, casando-se ente si. A partir daí tomaram rumos diferentes em busca de suas realizações pessoais e profissionais. A vida continuava e eles trocavam correspondência através de cartas e telegramas que, com o acúmulo cada vez maior dos afazeres cotidianos de cada um, foram diminuindo com o passar dos dias. Contudo, as lembranças nunca se apagaram das mentes dos quatro amigos, que prometiam a si mesmos que voltariam logo que chegasse o momento. Aí sim, promoveriam uma grande confraternização pra comemorar a ocasião e recuperar o tempo perdido. Alguns poucos anos decorreram e eles voltaram pra passar merecidas férias em família. Tudo combinado para o esperado dia do reencontro que seria realizado com toda a pompa na mais luxuosa churrascaria da cidade.
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Chegando ao restaurante, local onde haviam marcado para a esperada reaproximação, aconteceu grande e calorosa confraternização por parte dos quatro amigos que durante anos só se correspondiam através dos serviços prestados pelos Correios. Após a efusiva recepção, entraram no estabelecimento e sentaram-se à mesa caprichosamente ornamentada para a ocasião. Tomaram alguns drinks; brindaram à ocasião com vinhos das melhores safras e águas minerais das melhores fontes; conversaram durante horas. Experimentaram guloseimas avulsas como entrada enquanto aguardavam o momento mais propício para degustar o soberbo e significativo jantar. Após todos os brindes e vivas, finalmente chegou o prato principal, servido pelo engomado garçom, vestido a caráter trazendo nas mãos uma bandeja de prata com as iguarias solicitadas. Dentro da bandeja estavam os selecionados bifes passados ao ponto, com as batatas coradas, pedido feito pelos quatro novos clientes. A bem da verdade é bom que se diga que este era o prato preferido dos quatro, quando, muitas vezes, saiam para um bate-papo informal regado com bons vinhos. Dispensaram a presença do garçom na hora em que ele ia servir a comida. Sentiam-se em família e cada qual cuidaria de se servir sem a presença de um estranho. Contudo, ao contrário do tempo em que ainda eram jovens e talvez até um pouco inconseqüentes, naquele momento todos queriam demonstrar educação e finesse. Um após o outro apanhou o seu prato e transferiu pra ele um pedaço da carne macia e suculenta, mas teve o cuidado de pegar o menor pedaço como sinal de refinamento e amadurecimento pessoal.

Depois que os quatro amigos já tinham se servido dos bifes e das batatas e de tudo o mais, foi que notaram que na bandeja só havia sobrado um exuberante pedaço de carne. Que o pedaço de carne remanescente dentro da bandeja exposta sobre a mesa era maior, mais encorpado, mais carnudo, mais volumoso que os demais. Todavia, era apenas uma peça solitária dentro daquela travessa. Quem entre eles teria coragem de espetá-lo e colocá-lo no prato depois de comer o que já tinham pegado? Pensavam, mas nada diziam. Todos sabiam que em outros tempos qualquer um deles cometeria o ato com toda liberdade e sem nenhum pudor. Um dos amigos pensou baixinho pra ninguém ouvir. Ia propor o desmembramento do bife em quatro partes, com régua de alta precisão, mas o restaurante era fino demais e ele se recolheu em seu intento. Terminado o jantar, o garçom trouxe a conta e aproveitou o ensejo pra recolher o pouco que restou do lauto jantar. Contudo, foi com profundo sentimento de culpa que os ocupantes da mesa viram quando o garçom levou de volta para a cozinha aquele vigoroso pedaço de carne medindo um palmo de comprimento, u’a mão fechada de largura e três dedos de altura e ainda fumegante. Foi retirado intacto em cima da mesma bandeja que o levou para a mesa juntamente com os outros parceiros. Por sua vez, bastante consternado, ele, o bife, sabia que só o cozinheiro e ele estavam cientes do que estava acontecendo.

Pobre bife. Era a segunda vez que ele ia para a mesa do cliente, impecavelmente arrumado e pronto pra ser degustado e acontecia o pior. Duas vezes num só dia era demais pra ele. Primeiro foi logo no início do expediente, quando aquele grupo de rapazes e moças que - sem nenhuma cerimônia - pediram algumas porções de carne mal passada e que viesse disfarçada em bife à Cavalo, carregando um ovo frito na garupa. O grupo comeu até não mais poder, dando preferência aos outros bifinhos e não a ele. Por fim, por estarem saciados não mexeram naquele voluntarioso pedaço de carne que ainda se conservava inteiro e intacto. Por causa desse pequeno detalhe, ele, o bifão, voltou pra cozinha sem cumprir a sua nobre missão. Inconformado, retornou pra cozinha sangrando por dentro por ter sido preterido. Diante de tudo que acontecera naquele dia, o pedaço de carne estava preocupado. Mas, quem pode saber? Talvez ainda aparecesse um cliente retardatário, desejoso de um bom churrasco bem passado na grelha e ele fosse o escolhido. Era o primeiro da fila, porque já estava semipronto. Já havia sido queimado duas vezes naquele dia. O restaurante ficava à disposição do público até altas horas da madrugada, por isso ele tinha esperança de que algum freguês fortuito aparecesse e permitisse que ele pudesse ser novamente preparado a caráter pra sair triunfante pelas mãos do Maître em direção ao refeitório e ao prato de algum cliente retardatário, e, se a sorte desta vez fosse favorável, bastante faminto. Desiludido, mas esperançoso, ele, o bife já meio rodado, sabia que se não aparecesse uma terceira chance ainda naquela noite, mesmo sendo considerado por unanimidade como representante de uma das partes mais nobres das carnes, logo na manhã do dia seguinte seria colocado num “triturador” e transformado em “substrato”, também denominado carne moída. Viraria almôndega e com toda certeza iria preencher os espaços dentro das marmitas que humildemente, disfarçadas em quentinhas, saiam escondidas através da porta lateral daquela luxuosa churrascaria de fama e prestígio internacional.

Gelson Maciel Amaral
Nova Iguaçu - RJ

Um comentário:

Gerusa Leal disse...

Muito boa essa do bife de Lavoisier com sotaque do século desenove :)