quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Última da Mesa

A Mesa sempre tinha uma história para contar. Como falava! As Cadeiras sempre esperavam que ela se manifestasse para dividir os ocorridos. “Sabe a última da mesa?”. Todos queriam ouvir. Quando o bar fechava, elas empilhadas aguardavam ansiosamente o que a Mesa tinha para contar.

Como aquela história, da vez que chovia cântaros e o bar estava lotado, abarrotado, as Cadeiras eram disputadas a tapas pelos bebuns contumaz. Quando um grupo de quatro pessoas conseguiu sentar ao seu redor, ela ouviu o Português perguntar: “Uma cerveja e quatro copos?” No que um dos frequentadores o corrigiu: “Só três, não estou bebendo!”. E o patrício, grosso como papel de embrulhar prego resmungou: “Não tá bebendo? Num dia de chuva desses? Com o bar cheio. Então vai para a casa e dá lugar para quem quer beber!”. As risadas das Cadeiras ecoaram pelo bar já fechado.

As Cadeiras sempre queriam ouvir o que a Mesa tinha para contar. Por estarem embaixo, sufocadas pelas nádegas nunca ouviam o que se passava lá por cima. Os únicos sons que capturavam bem, eram dos flatos disfarçados que só elas podiam ouvir na barulheira do bar. A Mesa não. Sempre tinha uma novidade.

Teve aquela vez em que o cidadão chegou no bar e pediu uma sopa. Perguntou o preço para o Portuga que respondeu: “Seis Cruzeiros”. “Que roubo!!!” – Retrucou o freguês. Seu Manoel Como sempre, com sua polidez mandou: “Se não tem dinheiro para que perguntou? Não toma então...” Mas o pinguço não se fez de rogado. Tirou três notas de dois reais e chafurdou na sopa. Mexeu, mexeu e começou a tomar. Às vezes uma das cédulas vinha a sua boca e ele a retirava, esticava e colava nos azulejos do bar. Ao fim desta nojeira, disse ao Português: “Taí, seus seis reias!”

Ohhhhhhhhhh!!!!!!!

Nem sempre as histórias da Mesa eram engraçadas. Algumas vezes eram histórias de dor, de separação, de briga. Outras, discussões chatas de políticos chatos ou de pseudos intelectuais. Algumas eram poéticas e líricas. Outras amargas e cheias de ódio. Histórias de memórias vividas com intensidade numa outra época. Histórias que ainda iriam acontecer. Segredos e mentiras. Declarações e conversas fiadas. Piadas e teses de mestrados. Tudo. Tudinho a Mesa ficava sabendo antes e compartilhava com suas amigas.

“Mesa que é mesa não guarda segredo” dizia alto em seus tantos anos de serviços prestados a comunidade boêmia da cidade. Trabalhara em bares históricos da Lapa e muitos ilustres haviam sentado ao seu redor e feito-a de pandeiro em rodas de samba notívagas. Grandes canções nasceram ali. Orgulhava-se ao desfilar uma lista que ia de Noel Rosa e Wilson Batista a nova geração, como Marcelo D2 e Seu Jorge. Mal ficava num antiquário ou num brechó que algum dono de bar já a comprava novamente. Tinha estilo. Quase não ficou parada e sem histórias para contar neste século e tal de labuta.

Ao contrário das Cadeiras que se quebravam rápido e logo eram substituídas, a Mesa era pura resistência ao tempo. Mas estava sempre meio bêbada, pois mesa de madeira não se seca. Absorve. E foram tantos vinhos, cervejas, conhaques, caipirinhas, caninhas, whiskys, que nossa heroína não tinha um cheiro. Tinha um blend etílico inconfundível.

O velho Lusitano fora visitado pela Vigilância Sanitária e obrigado a reformar seu estabelecimento. Trocar os azulejos. Colocar piso antiderrapante. Balcão com vedação térmica. Nova cozinha inoxidável. E novas mesas. PLÁSTICAS. “Para melhor assepsia”. Nossa amiga fora aposentada. A princípio ficou triste como um piano mudo num canto da sala. Depois se lembrou de tudo que já havia vivido e sorriu como quem sabe do dever cumprido. E antes de ir embora no carroceiro, cheio de tralhas, a pedido das cadeiras e até das mesas novinhas e virgens plásticas – que conheciam sua fama secular - ainda teve espirituosismo para contar mais um causo. Mais uma das inúmeras e maravilhosas crônicas vividas por ela. E foi, de fato esta, a última da Mesa!

Cézar Ray
Nova Iguaçu - RJ / Recife - PE

2 comentários:

Gerusa Leal disse...

Criatividade pra dar e vender. Gostei da personificação da mesa. Um olhar diferente sobre o tema.

Joséricardo disse...

aí zaray muito inspirado seu conto, eengraçado que fui lendo um pouco decada e no seu antes que visse teu nome, já dava pra saber que era seu, tinha ali teu jeito pitoresco de descrever as coisas. parabens pela ediçao e pelos eventos vejo em vc um grande animador não dos eventos, mas das pessoas, bjo no core.