terça-feira, 23 de agosto de 2011

DMV – Eu Canto Samba - Paulinho da Viola

Quem não gosta de samba, bom sujeito não é; é ruim da cabeça ou doente do pé. Virou clichê, mas é a mais pura verdade. Pode alguém não gostar de samba? Pode. Eu. Quer dizer, não gostava. Isso mesmo. Aliás, detestava. Achava que tudo era pagode daquela época de 20 anos atrás de Raça Negra, Salgadinho, SPC e lixos congêneres, tais como os de hoje do tipo Belo, Exalta Samba e outras sensações. Misturava tudo num esgoto só. Desconhecia o que era (é) samba e o que era (é) dejeto.

Mas como sou um cara sortudo e caras sortudos têm bons amigos, Marco Crioulo apresentou o mundo do samba para esta alma ignóbil e preconceituosa. Soube fazê-lo de mansinho, agüentando meus comentários maliciosos e tendo aquela paciência de Jó. Fui observando o que era joio, o que era trigo e aprendendo a reeducar o meu ouvido até então exclusivamente mpbista (já, de certa forma, ambientado ao samba, mesmo que eu ainda não soubesse).

O DMV desta quinzena versa sobre um dos discos que representam um dos maiores legados da música brasileira. É um do tipo que ultrapassa a música, que já nasce clássico e que entra para a história do país: Eu Canto Samba, de Paulinho da Viola, LP/BMG Discos, 1989, produzido pelo próprio.

Um disco, entretanto, por si só, não tem a força necessária para já nascer clássico; depende, além dele, de uma série de circunstâncias e contextos. Mas, ao mesmo tempo, ter a força, a pujança de obra-prima é fundamental, é condição sine qua non. É um delicioso e instigante paradoxo. Eu Canto Samba é lançado após um hiato de cinco anos (o último disco de Paulinho fora o Prisma Luminoso de 1983), fato que nunca havia ocorrido antes em sua (dele) carreira, pois o intervalo entre um e outro trabalho até então fora de no máximo dois anos desde 1965 em sua estréia com o conjunto Rosa de Ouro.

Muitos de nós temos aquela imagem mansa de Paulinho. Fato que, definitivamente, tem a ver com a sua elegância e extrema polidez e nada a ver, saibam os desinformados, com a mansidão pejorativa dos covardes. Paulinho sempre foi voz corajosa e já em 1975 registrou seu elegante incômodo contra o que achava uma, digamos assim, perigosa descaracterização do samba quando compôs Argumento, no disco Paulinho da Viola daquele ano. Muita gente vestiu a carapuça na época, mas o recado não foi endereçado especificamente para ninguém.

Na canção homônima que abre e fecha o disco Eu Canto Samba, Paulinho volta a entoar sua voz inconformada, mas de uma inconformação que, mesmo que direta e objetiva, nos remete aos melhores momentos do samba e da alegria que ele proporciona. Ele diz assim: “Há muito tempo que eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou. Só se foi quando o dia clareou”. Genial. Este recado do Paulinho tem muito a ver com aquela fase dos cinco anos sem gravar que comentei acima. Nesse período o Brasil vivia a explosão do rock nacional depois do primeiro Rock in Rio em 1985 e também das bandas da New Wave. Michael Jackson espantava o mundo com Thriller. O Queen completava 300 milhões de discos. Sunday Bloody Sunday fazia o U2 decolar. Por aqui, tempos difíceis para o samba.

Lapa em plena decadência. Fim de regime militar. Rock, rebeldia e atitude combinavam bem. Mas não foi essa a motivação para a bronca do Paulinho. Ele é maior do que isso. A inconformidade veio da questão de que algumas pessoas, diante deste cenário desanimador, pareciam acreditar na morte do samba e, da mesma forma, passaram a ignorar o surgimento de nomes como o de Zeca Pagodinho (que havia lançado o seu primeiro LP em 1986) e o do Grupo Fundo de Quintal (na ativa desde 1980), para ficar em dois exemplos, além, da própria força imensurável e sempre presente das escolas de samba nas comunidades do Rio de Janeiro, junto de todas as castas de sambistas que sempre giraram no entorno delas. E hoje em dia o samba está por aí, forte e sarado. Quem tinha razão?

O disco conta com uma capa do Elifas Andreato que é o retrato de uma simplicidade proposital: o recosto do compositor na árvore e um cavaquinho ao lado: o samba em si. Eu Canto Samba segue com pérolas do tipo Um Caso Perdido e Fulaninha, onde Paulinho chega a parecer o romântico ingênuo e puro ao desejar a musa nem tão pura assim no primeiro caso e a sonhar com a Fulana, no segundo. Mas não é ingenuidade. É sublimação em relação ao mundo cruel, à realidade brusca: um não-tô-nem-aí com terno de linho branco, chapéu panamá e buquê de flores na mão. Mas o disco tem samba da pesada também: Quando Bate Uma Saudade, Pintou Um Bode e a faixa–título Eu Canto Samba dizem tudo. Outros destaques: O Tímido e o Manequim e Com Lealdade, lindas canções.

É um disco de Paulinho afiado. No coração e na viola.

Se não ouviu, ouça. Se não sambou, sambe. Se não amou, ame.

Salta uma Brahma aê, Raymundo!

Para baixar o disco Eu Canto Samba de Paulinho da Viola click aqui:

Marlos Degani é poeta e cronista do sítio Baixada Fácil, para acompanhar suas andanças pelo mundo virtual é só procurá-lo num desses endereços:

O poeta está no My Space http://www.myspace.com/marlosdegani
O poeta está no YouTube http://www.youtube.com (digitar Marlos Degani)
O poeta está na página do Desmaio Públiko do
O poeta está no Baixada Fácil
O poeta está no Twitter @MarlosDegani




2 comentários:

Zaray disse...

Inesquecível para mim, um show de Paulinho (que eu saiba o único) em Nova Iguaçu no SESC há alguns poucos anos. Além de um show primoroso, mesmo com aquela acústica horrível da quadra, o que me marcou profundamente foi sua gentileza e elegância pós show. A maioria dos artistas que assisti ali, acabava seu papel e corria para o camarim. E Paulinho ficou ao lado do palco recebendo os comprimentos um por um. E tinha uma fila enorme onde eu também esperava minha vez para falar com o mestre. Duas meninas antes de mim pediram uma foto o que Paulinho elegantemente posou enquanto a amiga fazia o click. Surpreendentemente foi ele quem avisou: "Olha, o flash não bateu. É melhor vc fazer outra". Aquilo para mim foi de uma preocupação além do que estava acostumado. Na minha vez, beijei e fui beijado por ele e pedi: "Paulinho, volte mais a Nova Iguaçu" e ele tranquilo me respondeu: "É só me convidar mais vezes. Ninguém nunca me convida". Sem palavras.

Zaray disse...

Outra vez foi aqui em Recife, no Carnaval. Eu, Cláudio Lyra e Mariana Dias fomos assistir seu show grátis no Fortim em Olinda. E ele veio depois de um show empolgante dos Demônios da Garoa. E todo tímido e sem graça confessou: "Gente, vai ser difícil eu segurar a onda depois deles. Pois meu show que estou ensaiado é muito calmo. Então vcs mes perdoem se ficar chato." Mas isso, sentido de verdade o peso. Sem hipocrisia. E vc acha que ele decepcionou? Nada. Mesmo um show bem devagar, o público foi ao delírio. E eu confirmei que empolagação nada tem a ver com músicas rápidas, agitadas ou engraçadas. Ela empolga de verdade quando há verdade e beleza em sua execução.