sábado, 27 de outubro de 2012

Buraco Virtual do Desenrolo Filosófico

Espelhos Divergentes

Cheguei à capela 03 do São João Batista às seis e vinte da manhã. Fui o primeiro a chegar. No corredor, somente umas três ou quatro sonolentas testemunhas da capela vizinha que passaram a noite no cemitério. Dei um ‘bom dia’ silencioso a elas meneando a cabeça e esperei o zelador subir com a chave.

Deixei minha mulher com as crianças (que não são mais crianças: o mais novo tem 19 anos e a mais velha 24, mas ainda não acostumei a chamá-los de outra forma) em casa, tomando café da manhã. Eles estranharam minha pressa e tentaram me demover da idéia de vir sozinho – provavelmente pensando que eu ainda estivesse em choque por causa da notícia – mas eu estava convicto.

A morte de Claudio certamente foi um baque – ainda mais porque ele não dava notícias há pelo menos oito anos. Desde que se mudou para Brasília o contato com a família foi ficando cada vez mais esparso até se esgotar por completo.

O responsável pela capela veio abrir a porta com o livro de presenças debaixo do braço: um caderno de capa de plástico verde musgo, com poucas folhas, que foi deixado à entrada.

Olhei a esferográfica pousada em cima do caderno, mas não tive ânimo de pegá-la.

Mas ela me sorria, atraente, tentando me dar um tiro certeiro. Seduzia-me em sua nudez. Dei de ombros.

O zelador abriu a enorme janela de alumínio e por trás do vidro canelado surgiu uma paisagem feia de túmulos de concreto. Como que para compensar a vista, uma agradável brisa matutina veio refrescar o recinto.

O caixão estava à mesa, fechado. Aproximei-me dele vagarosamente e com certa dificuldade, como se estivesse andando sobre areia movediça. Inclinei-me sobre a abertura de vidro da tampa e lá estava Claudio. Meu irmão gêmeo.

Era uma sensação quase irreal ver meu irmão daquele jeito – o rosto emoldurado por pétalas brancas, pálido, inexpressivo. Morto.

Por um instante não o reconheci. Ver Claudio sempre foi como observar minha própria imagem no espelho: somos (éramos) gêmeos idênticos, univitelinos. Até nossa mãe tinha dificuldade em nos diferenciar. Agora Claudio parecia um boneco de cera, uma cópia malfeita do homem que eu conheci durante minha vida toda. Era um estranho para mim.

Pela primeira vez em 56 anos, senti-me completamente só.

Claudio sempre foi o rebelde da família; já para mim sempre coube o papel do conciliador, o filho responsável. Era uma piada interna de família dizer que “Claudio e Daniel eram os gêmeos idênticos mais diferentes do mundo”. E a graça residia exatamente na nossa impressionante semelhança física; somos (éramos -- tenho que me acostumar a conjugar esse verbo no passado) tão parecidos que chegamos ao cúmulo de possuir até mesmo uma cicatriz idêntica logo abaixo do queixo. Foi assim:

Aos três anos, estava eu correndo pela casa quando caí de queixo no piso recém-encerado, abrindo um corte feio de mais ou menos três centímetros; Dois dias depois, tomando banho, Claudio escorregou na banheira e cortou-se exatamente da mesma forma que eu.

Esse acontecimento virou lenda na nossa família – até hoje contam o episódio como sendo algo de natureza mística, uma espécie de prova do elo sobrenatural que une os gêmeos. Quanto a nós, nos limitávamos a rir dessas explicações tresloucadas que as pessoas inventavam para algo que nos era tão natural.

A única característica que realmente nos diferenciava era o fato de eu ser destro e Claudio, canhoto. Talvez esse detalhe tão simples tenha sido o fator que mais nos diferenciou e que passou despercebido por todos durante toda nossa vida.

Relembrando os acontecimentos, vejo que isso foi algo que realmente foi determinante para a nossa separação. Até os cinco anos mais ou menos nós éramos praticamente siameses, vivíamos quase que literalmente grudados, fazendo tudo juntos -- como nos clichês dos filmes americanos, onde um gêmeo pensa o começo da frase e o outro a termina.

Isso começou a mudar quando entramos no colégio apesar de estudarmos na mesma classe, lembro que foi durante a alfabetização que o nosso processo de separação começou a acontecer, fomos gradativamente perdendo essa ligação e nos tornando indivíduos pela primeira vez.

Lembro da minha facilidade em aprender a escrever, aprendendo os fonemas e praticando as letras com afinco no meu caderno de caligrafia. Já Claudio teve muita dificuldade, justamente por ser canhoto: as professoras não possuíam a pedagogia de hoje e achavam que o correto era aprender com a mão direita – portanto o forçavam a esquecer a mão dominante e escrever com a outra mão. O resultado foi obviamente catastrófico: Claudio via meu progresso e se frustrava, já que não conseguia escrever como eu. Isso foi traumático para ambos, pois isso nos mostrou que apesar de nossas semelhanças, nossas capacidades não eram iguais. Mas foi muito pior para Claudio, que se sentiu inferior a mim por ter uma letra feia e não ter a habilidade de escrever com a mão direita.

Após poucos meses Claudio conseguiu aos trancos e barrancos elaborar uma caligrafia passável com a mão direita (nunca foi bonita) e isso não foi mais problema durante o primário. No final da terceira série haviam o deixado em paz e ele finalmente pôde escrever com a mão esquerda, o que foi uma libertação -- O resultado dessa história é que ele se tornou ambidestro.

Mas as cicatrizes da alfabetização (e a evidência de que éramos diferentes) ficaram.

Provavelmente ter sido forçado na infância a alterar uma função que lhe era natural, Claudio desenvolveu uma rebeldia que na época nenhum de nós entendia a razão, mas hoje eu compreendo perfeitamente.
Casei só uma vez, estou casado há 28 anos com a mesma mulher. Bebo moderadamente, fumo um maço de cigarros por dia (tentando parar há 4 anos), sou funcionário público à beira da aposentadoria, renda estável, pecúlio garantido para esposa e filhos, tentando controlar meu colesterol e meus triglicerídeos para tentar prolongar essa minha vida estável, calma e sedentária.

Esse sou eu, Daniel, o destro. Sempre levando uma vida direita - destra.

Claudio se casou três vezes, não teve filhos. Fez quatro anos de faculdade de medicina quando decidiu largar tudo. Nossos pais quase o deserdaram quando ele resolveu tirar um ano sabático para viajar pelo Brasil – ano sabático que durou praticamente sua vida inteira, já que nunca mais voltou. O plano de conhecer o Brasil durou somente 2 semanas, pois chegando em São Paulo Claudio sacou o dinheiro guardado na caderneta de poupança para comprar uma passagem para Londres.

Ficou na Europa durante 12 anos, trabalhando nos empregos mais humilhantes que se possa imaginar, daqueles que são reservados somente a imigrantes. Durante esse período eu era a única ponte entre ele e meus pais, já que eles se recusavam até mesmo a falar com ele pelo telefone (com certeza por medo de fraquejarem e implorarem para que ele voltasse logo).

De volta ao Brasil, apresentou um portfólio de retratos em uma redação de revistas carioca e a partir daí virou fotógrafo. Ganhava fortunas com um trabalho e depois ficava meses na miséria por conta de calotes - e também por não saber cuidar das finanças. Portanto, sua rotina era ficar alternando entre o luxo e a pobreza várias vezes ao ano.

Mas nunca ligou para dinheiro, já que o serviço proporcionava o que ele mais gostava de fazer, que era viajar.

Esse era Claudio, a ovelha negra da família. O errado, o canhoto.

Estranho como as mais simples escolhas nas nossas vidas determinam todo nosso destino. É assustador pensar que a forma de escrever possa mudar completamente nosso comportamento, nossa forma de pensar, de agir.

Será que se eu fosse forçado a escrever com a mão esquerda meu destino seria diferente? E Claudio? Seria diferente se não tivessem forçado a mudar sua natureza?

Acredito que sim. Tenho provas disso. Mas isso é uma convicção empírica e pessoal, não quero nem posso convencer ninguém disso. Nunca conversei com isso nem com minha esposa – ela apesar de me amar muito, não entenderia. Existem coisas que vão conosco para o túmulo.

Meu irmão está morto. Metade de mim será enterrada naquela caixa de madeira daqui a algumas horas e eu sinto como se tivessem colocado uma pedra de concreto pressionando meu peito.

Muito cedo, muito jovem.

Nunca mais ele baterá na minha porta chegando de viagem e nunca mais nós poderemos nos comparar como sempre fizemos durante a vida toda: Quem estava mais gordo, quem deixou a barba crescer, quem atingiu a puberdade primeiro e em qual de nós nasceu o primeiro fio de cabelo branco.O resto da jornada terei que seguir sozinho.

Olho mais uma vez para meu irmão. Começo a notar as semelhanças que o choque inicial não me deixou perceber antes. Admiro suas feições pela última vez e faço uma prece silenciosa agradecendo pelo milagre de ter nascido junto com ele.

Vejo suas sobrancelhas finalmente descansadas (que viviam sempre vincadas de preocupação), seus lábios. A cicatriz debaixo do queixo. Abro um sorriso e por reflexo, levo a mão ao meu próprio queixo.

Já são sete e cinco e as pessoas começaram a chegar. Minha esposa e as crianças (eu sei, mas pra mim sempre serão crianças) vêm e me dão um beijo, me perguntando como estou. Dou um sorriso para tranquilizá-los e digo que está tudo bem.

Menos de dez minutos depois, a capela já está lotada. Amigos, primos, ex-mulheres... Todo enterro no final vira um filme de Fellini, com choro e gargalhadas na mesma proporção.

Vou até a cantina e peço um café. Não foi a melhor escolha (aguado e fervendo, como todo café de cantina), mas pedi mais por hábito que por necessidade. Bebo metade do conteúdo e dispenso o copo plástico na lixeira.

À entrada da capela, me deparo novamente com o livreto verde musgo.

O livro de presenças já estava aberto na segunda página e vejo que praticamente todos já o assinaram. Até Beatriz, sua segunda (ex) esposa, que sempre viveu às turras com ele durante a vida inteira, havia rabiscado suas condolências no livro. Olhei novamente para a caneta ao lado e finalmente a pego.

Desenho primeiro um “C” (quase irreconhecível), depois um “L” (ainda difícil), um “A” (tremido, mas ficando melhor)... e assim por diante.

Pronto.

“Claudio,
Você é minha carne. Você é meu coração. Durma em paz.
Um beijo do seu irmão.
Com a minha esquerda,

Daniel”.


Brenner Oliveira é um grande poeta e escritor. Não o conheço pessoalmente, mas sua pena sempre me emociona quando tenho o prazer de navegar com ela. Você encontra mais belezas como este conto aqui publicadas na página do Facebook do Buraco Virtual do Desenrolo Filosófico aqui ó:

Um comentário:

Palavras Versadas disse...

Talentoso esse Menino.

Texto muito bom

Parabéns Brenner