quarta-feira, 20 de abril de 2011

A FOTÓGRAFA E O INCÊNDIO

Se ela soubesse que justamente naquela noite iria topar com um incêndio de tal magnitude, teria levado sua máquina profissional e não aquela lambe-lambe da 25 de março. Havia comprado uma Nikon D90 há seis meses e praticamente não usara. Gastou em sua aquisição toda a rescisão de seu emprego anterior. Por conta do vulto deste investimento tinha um terrível receio em sair com ela pelo Recife.

Fez curso para profissionalizar o que sempre fora um hobby, a fotografia. Lembrava ainda com carinho de sua primeira máquina que ganhou da tia em seu 14º aniversário. Uma Kodak Instamatic 101 mais conhecida como Xereta, com flashizinhos descartáveis. Com ela fez sua estréia no maravilhoso mundo de Niépce e Daguerre. Seu coelho Dentão, sua Monark Monareta e sua tartaruga Luga foram as primeiras cobaias.

As máquinas foram se sofisticando e os resultados de suas fotos também. Fez ensaios sensuais de amigas, registrou todos os momentos importantes da família e virou a fotógrafa oficial da galera. Fotografava seus artistas preferidos: Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, Otto e toda a geração Mangue Beat. Chegou a ganhar um dinheirinho bacana fazendo fotos de casamentos, batizados, primeira comunhão, aniversários entre outras datas comemorativas. Mas o que lhe encantava era o foto-jornalismo, carreira da qual queria seguir e tirar seu sustento.

Porém a vida nem sempre nos leva pelos caminhos que sonhamos. Tantas vezes temos que abdicar de nossas aspirações e acabamos em destinos nunca antes planejados. Destinos que parecem desenhados para outros, como se estivéssemos vivendo a vida de alguém. Como se o que fora reservado para nós tivesse ido parar em mãos erradas. E quando nos damos conta, a vida – rápida como um piscar de olhos – passou e então percebemos que é tarde demais para reclamar nosso quinhão de felicidade.

Ela trabalhou como assistente de contabilidade, gerente de imobiliária e nos últimos meses amargava seus dias de frustrações como caixa de banco. Nunca reclamava. Esperava o momento em que pudesse largar tudo e viver do que mais amava. Como esse momento não chegara se resignava a apenas esperar e esperar. Usava suas lentes em momentos fortuitos e oferecia seus cliques a jornais que nunca os queriam.

Mas nem sempre se está no lugar certo na hora certa como naquele momento do incêndio. Passava de carro por Piedade quando sua amiga, que dirigia, viu de longe as chamas saírem da janela de um apartamento como um vulcão em erupção. Parou imediatamente e sugeriu a sua colega de banco que pegasse a máquina e registrasse, visto que não havia nenhum outro fotógrafo ali e até os bombeiros não estavam chamando atenção. “Vai menina é a sua chance de ouro!”

Foi quando percebeu a burrada que havia cometido deixando sua Nikon em casa. Puxou a Ching-Ling Piratex da bolsa e registrou o incêndio como pode. Era um incêndio e tanto. As vidraças do apartamento estouravam com o calor do fogo que dançava com suas garras para fora do edifício, como se puxasse mais oxigênio para alimentar-se.

Uma leve chuva caiu, molhando sua lente com pequenas gotículas o que a obrigou, depois de alguns cliques, parar de fotografar. Além da frustração por não estar com a máquina certa, aquela chuva ainda atrapalhou todo seu esforço para pegar um melhor ângulo. Foi para casa avexada e com sentimento de “dor de corno”.


Na tarde do dia seguinte um amigo do Jornal do Commércio comentou sobre o incêndio, disse que houve vítima e que estavam pagando razoável por um bom registro. Ela não quis dizer que estava lá e muito menos que fotografara o sinistro, já que naquela mesma manhã quando mostrava as fotos que tirou ao seu chefe, ele fez piadinhas e ainda disse que ninguém conseguiria entender que aquilo era um incêndio. “Tá mais para um cara fumando unzinho na janela”.

Chegou a pensar em vender a máquina e desistir do sonho. Chegou a pensar que sua vida estava predestinada ao fracasso. Que morreria contando dinheiro e pagando contas alheias. Chegou a chorar aquela noite com uma ponta de arrependimento por lamentar a foto e não a vida perdida no incêndio. Chegou a acreditar que tudo era uma grande injustiça. E dormiu entre lágrimas.

Uma semana se passou quando de repente viu sua foto ilustrando a capa de uma grande revista. Como assim? Aquela foto cheia de gotas na lente? Como fora parar ali? Mais tarde veio saber que sua amiga, vendo sua decepção e tristeza resolveu enviar por conta própria as fotos para várias editoras. Uma revista que fazia uma matéria sobre incêndios domésticos gostou e pagou um bom dinheiro e ainda a publicou na capa. Ela renasceu! Não sabia onde guardar tamanha felicidade! Sua amiga fizera uma surpresa incendiária...

Mas, mais surpreendente ainda foi ela ser eleita a foto do ano pela APCA e receber elogios como “O horror e a violência do impiedoso fogo retratado por uma lente sensível que parece chorar”... ou ainda “As gotas na lente amenizaram e deram novos tons ao fogo que consumia e ao mesmo tempo era consumido”.

A partir dali, nunca mais deixou sua Nikon D90 em casa. Mas preferia mesmo eram os cliques paridos daquela maquininha genérica, sem grife, sem marca ou pedigree. Pois as duas se pareciam. Surpreendiam quando ninguém mais dava nada por elas...

João Cigano
13/02/2011

João Cigano sou eu disfarçado.

2 comentários:

Arte e Cultura Popular disse...

Caracamané a chingling piratex campeã
como diz o velho deitado mais vale...
mais vale... mais vale... vários ditos populares!!!Valeu!!!

silvana disse...

João Cigano seu desabusado!!! Vixe!!! Mui bueno!!!