Escutou os gritos agudos ouviu também e sentiu as vibrações dos golpes no assoalho de madeira. Gregório precipitava-se pelo corredor e quase se choca com Mara que saía afobada do gabinete. Disparou entre os dois, forçou a passagem por uma brecha na porta da cozinha, no mesmo pique escalou o muro e mergulhou na lixeira. Ali estaria seguro.
Tateou alguma coisa para matar a fome. O ventre aberto do pássaro oferecia-lhe o manjar das vísceras expostas e ainda mornas, com que se regalou.
Por instinto, contorceu-se, virando a cabeça para a porta. Alguma razão que não conseguia desvendar levava-o a reviver a última refeição. Ouviu Gregório gritar alguma coisa e seu coração se contraiu. Mas Inocêncio replicou com serenidade. A voz suave devolveu-o ao relativo conforto do devaneio com o último jantar.
Pendia, de cabeça para baixo, seguro, atado pelos membros inferiores. A vertigem da rápida descida, misturada à dor aguda da queimadura. Já não era uma sensação nova. Não o apavorava mais tanto. Mesmo assim, sentiu-se miserável e infeliz como nunca. Se é que se poderia chamar de sentimento ao desfalecer que lhe percorria o corpo e ameaçava engolfar-lhe o cérebro.
O contato do instrumento frio trouxe-o de volta. Era tudo confuso. Agora explorava o baú que um dia encontrara aberto no gabinete. O brilho da lâmpada no teto refletia-se nos artefatos de metal e isso o fascinava. Uma sombra o alertou de que não estava mais só. Sentiu o toque da mão, ouviu o grito agudo e retesou-se pronto para fugir. Mas a gargalhada grave e cristalina, já tão familiar, o acalmou. Enquanto os passos, o choro e a risada se afastavam, aproveitou para escapar da armadilha.
Depois da refeição, gostava de se esgueirar pelos móveis. Lembrou-se daquele frasco em cima do aparador em que numa madrugada esbarrara enquanto fazia seu passeio exploratório. E do susto quando mais rápido do que imaginava a lâmpada se acendeu, flagrando-o desprotegido. Estudou cuidadosamente o ambiente em volta e mergulhou na gaveta das fotos.
Então novamente o calor do fogo. Havia compreendido que de nada adiantava, mas talvez por puro reflexo estorcia-se, guinchava. Grudava-lhe na pele o líquido morno e gosmento. Torturava-o a ardência nos pontos onde perdera os pelos.
O trecho roído na borda da foto que emoldurava o rosto pálido da moça não lhe afetava a beleza. Degustava-a despreocupada e lentamente. Cabelos negros presos em coque, ornados pela grinalda de flores miúdas, os olhos castanhos, grandes, profundos e tristes, foi a última imagem que seu cérebro reteve antes de tudo escurecer.
Já não se movia mais, mas ainda estava ali. O suficiente para sofrer, em algum lugar da já quase inexistente consciência, a dor mais lancinante. Era lenta e se prolongava, parecia não ter fim. Depois de algum tempo, chegava, aos ouvidos, apenas, o som de batidas, num bombo, gigantesco, e distante, o líquido morno, pingando, dentro do recipiente, sob sua cabeça.
Acabara-se a urgência. E a sensação de perigo. Já se esquecera do mundo quando sentiu outra vez o fogo lambendo-lhe o corpo. Não havia mais dor. Terminara a agonia. As imagens iam e vinham, em flashes, e foram se dissipando, virando sombra de sombra, até ficarem opacas e cinzas. Feito o pelo chamuscado.
Texto publicado no caderno especial em homenagem a Machado de Assis, na coletânea Contos de Oficina 2008, organizada por Raimundo Carrero, lançada em 08 de novembro de 2008 na Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas – ano IV.
Gerusa Leal
Gerusa Leal é recifense, moradora de Olinda. É autora de contos e poemas publicados em várias coletâneas, blogs e jornais. Várias vezes premiada, inclusive pela Academia Pernambucana de Letras com o livro Versilêncios.
Um comentário:
È realmente uma tecnica apurada uma leitura compassada um argumento específico fechando com chave de ouro minha leitura e vou me despedindo emandando meus parabéns ao evento e torcendo para a proxima edição "chover"... De contos maravilhosos!!! BOa pascôa a todos.
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