quarta-feira, 20 de abril de 2011

ASSIM É A MORTE

Eu vim aqui para contar para vocês como é estar morto. É simples! A gente quando está vivo fica grilado, pensando e especulando um monte de baboseira. Que nada! Morrer é simples e depois de morto é muito parecido com estar vivo. Ficamos com a aparência da época em que morremos. Por isso tem muito, mas muitos velhos lá. Ah, também não existe céu e nem inferno. É a mesma bosta, gente ruim e gente boa no mesmo caldeirão. Até porque se fosse para quem pecasse ou tivesse sido mau em vida ir para o inferno, ele estaria lotado e o céu vazio, vazio...

Morri em Jaboatão dos Guararapes em Pernambuco. Num incêndio. O bairro chama-se Piedade, mas Zé Maria não teve piedade de mim não. Levou-me. Pegou-me pelos braços e quando vi, acordei lá. Parecia um hospital. Pensei que tivesse julgamento, anjos, querubins, Deus num trono de cristal... Que nada! Vêm uns caras com disposição de funcionário público, fazem uma ficha e te liberam. Aí tu sai e vai procurar gente conhecida. Algumas vêm te receber, outras não estão nem aí. Já morreram querem mais é uma nova vida (ainda que estejam mortas).

Que nem aquela história dos velhinhos que ficaram casados 60 anos até o marido morrer. Quando a esposa faleceu alguns anos depois foi correndo procurar por ele. Quando o encontrou ele estava com umas mortinhas novinhas (piriguetes do além), cheio de lero-lero. Ela chegou na maior autoridade e ele rápido disse logo: “Peraí mulher, eu prometi até que a morte nos separe!”. Tem gente que é assim, aturam os outros, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, parentes só enquanto estão vivos. Depois de mortos querem mais é que se fodam!

Eu nem me lembrava como acontecera o ocorrido. Procurei um desses funcionários que me fez preencher um monte de formulários para poder assistir somente ao meu último dia na Terra e o seguinte, data de meu enterro. Eu pensava que depois de morto a gente tivesse livre acesso as coisas da vida. Que nada. É uma burocracia da bexiga! Não se pode espiar os parentes vivos, não se pode olhar o passado, nem dar uma de fantasma pode. “Só uma assustadinha na minha sogra?” Nada. É pior que estar vivo. É um não pode, não pode, não pode...

Descobri umas coisas sobre morrer também. Não existe esta coisa de data pré-determinada. A gente é que vai fazendo as cagadas que nos levam diretinho para o fim. Comigo mesmo foi assim. Fiz uma merda que resultou nisso.

Quando era menor o medo da morte era danado. Pensava nela e chegava a dar uns troços. Depois fui ficando mais cascudo e encarando o inevitável com algumas exigências: não sofrer, que acontecesse rápida e indolor, que não fosse vergonhosa (certa vez deitado embaixo de um coqueiro na Coroa do Avião, um coco caiu ao meu lado. Já pensou: “Morreu com uma cocada no coco” a manchete do dia seguinte).

Mas o que eu queria mesmo era morrer depois de ficar famoso. Tudo bem que não fiz nada nesta direção. Minha vida sempre foi muito mais ou menos. Sem grandes atos, sem grandes aparições, sem flashes ou holofotes. Minha maior notoriedade foi numa entrevista para TV do presidente Lula em uma de suas visitas ao Recife em que eu aparecia ao fundo sorrindo e dando tchauzinho. Todo mundo: “Bem vi você no Jornal” ou “Era você atrás do Lula, não era?”. Enfim uma vida sem glamour algum. Mas pelo menos na hora de me despedir, poderia ser em grande estilo. Salvando a vida de alguém, num acidente de avião ou, sei lá, num ataque terrorista. Eh, acho que desperdicei minha vida vendo televisão...

Fui um fumante inveterado durante décadas e até achava que o câncer é quem seria o meu algoz. Sempre gostei de uma cervejinha (podem tirar o cavalinho da chuva que na morte não tem cerveja e foi aí que eu descobri que paraíso não existe) e foi por conta desta combinação que eu vim parar aqui. Quando acompanhei os momentos antes de minha morte e o próprio instante em si, vi como nossas vidas são frágeis e que para estar assim, morto, basta tão pouco. Um descuido e "fui..".

O pior é que morri sem status nenhum. Um incêndio tirou a vida de uma pessoa (euzinho) – e olha que as chamas eram altas, minha janela parecia a boca de um dragão – e mesmo assim só tinha uma fotógrafa amadora. Amadoríssima! Nem unzinho que fosse profissional de qualquer jornal mais peba de Pernambuco estava passando na hora. E o pior, a menina era tão inexperiente que a foto nem pode ser vendida ou aproveitada. No dia seguinte ela mostrou ao seu chefe que disse: “Isso é um incêndio? Parece alguém na janela puxando a brasa de seu baseado”. Pense numa foto boa...

E meu azar foi tão grande que quando os bombeiros foram atender o sinistro e ligaram a sirene (eu sempre adorei a sirene dos bombeiros, quando era pequeno saía correndo para a rua de onde estivesse só para vê-los passando), ela pifou. Ou seja, não fizeram um pio durante todo o percurso. Bombeiro sem esporro é o mesmo que muriçoca sem violinos desafinados, picam, mas não irritam. Acabei morrendo sem nenhuma nota em jornal. O incêndio lambeu meu apartamento inteiro, me matou e só virei um boletim de ocorrência.

Quando fui preencher minha ficha com os “burocratas celestiais” eles até fizeram troça da minha "passagem", mas como ainda não estava familiarizado com a morte, como estava assimilando o que havia me acontecido e como nem sabia ao certo o que ocorrera, passei batido. Mas se na hora eu soubesse o que sei hoje, ah, isso não ficaria assim não. Mas não ficaria mesmo!

O Santa Cruz havia jogado aquela noite e perdido mais uma vez. Assisti ao jogo no bar Jabá. Bebi várias cervejas. Fumei vários cigarros de nervoso. Depois da derrota, puto da vida, ao invés de voltar para casa, fiquei ali bebendo e bebendo. Afogando as mágoas. Fui para casa mais para lá do que para cá (agora entendo perfeitamente esta expressão). Na cama, bêbado que nem um gambá acendi meu último cigarro – da carteira e da vida. Antes que ele se apagasse, eu apaguei. O resto não preciso nem contar, né? Morri asfixiado pela fumaça do incêndio que o cigarro provocou. Deu uma vontade de ir lá e me acordar gritando: “Olha seu imbecil o que você fez! Acorda, tu vai morrer desgraça!” Mas depois percebemos que não há mais como voltar. Resta-nos lamentar e aceitar que para morrer basta estar vivo.

E é isso que é morrer. Besta assim, sem grandes complicações e sem explicações. Acaba aqui e começa lá.
Saber que iria morrer eu sempre soube. E desconfiava que o cigarro é quem iria acabar me matando. Mas não desta maneira...

Cézar Ray
17/02/2011

Cézar Ray sou eu.

7 comentários:

Arte e Cultura Popular disse...

Porra velho sem sacanagem comecei a ler o conto e viajei não sabia que era seu burocrata celestial é sacanagem, talvez vc pudesse dar uma espiadinha se preenchesse a papelada em sei lá, cinco vias, dez...Sem glamour jamais!!! Adorei e ri demais legal valeu!!!

Zaray disse...

Pregolino
Estou muito feliz por vc está lendo e se amarrando no Blog. E o legal é que vc comenta e é tão importante para mim estes comentários!!! Obrigado!

Amanda Sultanum disse...

Cesar, Morri de rir...que morte sem glamour...hehehehe! Se tiver vaga para mais um "contador de contos" me avisa o próximo encontro...Abc, Amanda Sultanum

Zaray disse...

Amandinha
Que bom que gostou!
Claro que tem vaga para vc!
Contoo espontâneo teu ou com o tema sugerido "Cadê Denise?"
Beijos

Denise disse...

E foi pro céu heim...rsrsrrsr
Muito bom!!

Zaray disse...

Será que isso é céu? Valeu Carrapatinha!

Cláudia disse...

Ai irmão, morri de rir.... Muito bom.... e apesar de sem glamour, a morte ficou sem temor também.... muito legal. Eu acho que lá (no além) é assim mesmo, sem paraíso ou inferno....
Sabe que esse seu conto daria um ótimo especial da Globo? Desses de fim de ano... de um episódio só...(imaginei até o Pedro Paulo Rangel contando a história).

Parabéns!!!