quarta-feira, 20 de abril de 2011

BOITATÁ (A Origem do Fogo)

Conta uma lenda indígena que houve um período de noites sem fim nas matas, escuridão acompanhada por uma enorme enchente que obrigou os animais a se protegerem em um local mais elevado. A boiguaçu, uma cobra que vivia em uma gruta escura, desperta com a inundação e sai em busca de alimento, com a vantagem de ser o único bicho a enxergar no escuro. Passou então a comer os olhos dos animais que encontrava e, de tanto os comer, ficou luminosa como uma bola de fogo com a luz de todos esses olhos. Farta e ao mesmo tempo fraca com a caçada, ela morre e reaparece como um rastro luminoso serpenteando pela mata, protegendo contra aqueles que a incendeiam. Os índios a chamam de Boitatá (junção das palavras tupis boi e tatá) e contam que quem encontra com esse ser fantástico pode ficar cego, morrer ou até enlouquecer.

Galdino acordou cedo. Afinal, não era todo dia que tinha a oportunidade de conversar pessoalmente com o Presidente. Vindo do sul da Bahia, de uma terra indígena conhecida por Caramuru-Paraguaçu, o índio Pataxó fez sua primeira refeição do dia na pensão onde estava hospedado. Serviu-se de chipa, pamonhada e provou do tereré que lembrava os ervais nativos da sua terra. Era o dia do Índio (19 de abril de 1997), mas ninguém na casa lembrou disso.

Apressou-se em pegar o ônibus para o Planalto. Lá chegando, foi recebido por dois representantes da secretaria-geral da Presidência da República e, em seguida, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso. Participou de várias reuniões juntamente com outras 7 lideranças, algumas autoridades e trabalhadores do MST, onde apresentou reivindicações para recuperação da sua terra, em conflito fundiário com fazendeiros. Como chegou tarde das reuniões, não pode dormir na pensão onde se hospedara.

Procurou então um lugar onde poderia descansar do longo dia. Conseguiu um cobertor emprestado na mercearia da esquina, perto da pensão, e andou em direção à pracinha do bairro. Acomodou-se no banco da parada de ônibus (não muito diferente da esteira na qual estava acostumado a dormir) e olhou para as estrelas. Lembrou do seu povo Pataxó-hã-hã-hãe, do som do vento agitando a mata, dos animais que ganhavam vida na calada da noite, das tradições e lendas que mantinham acesa a história da tribo frente a uma cultura moderna que cada vez mais sufocava sua existência.

Foi à Brasília com o objetivo de levar esperança àqueles que viam, diariamente, suas terras sendo tomadas pelo homem branco, além de honrar os amigos que foram mortos nos confrontos com fazendeiros. Pensou em sua índia, nas conversas tranquilas com a companheira em volta da fogueira, sentia falta de sua comida e de seu sorriso iluminado como a lua (para a tribo, uma divindade). Esses pensamentos amenizaram o enfado do lento processo de retomada das terras (invadidas em 1928) que, desde 1980, permanecia sem solução.
Aos poucos foi tomado pelo sono que, em área urbana, demorara a chegar. Dormiu sonhando com o fim de toda aquela confusão, quando enfim poderia desfrutar os anos que lhe faltavam na sua terra natal, em paz. Mas não sabia ele o que estava por vir. Nem imaginava que não mais veria sua gente, sua mulher, nem as árvores e os bichos que tanto respeitava.

De repente, na madrugada do dia 20 de abril daquele ano, uns jovens bêbados se aproximaram do índio Pataxó com um litro de álcool e uma caixa de fósforos nas mãos. Galdino dormia. Dormia e sonhava. Mas despertou do sonho em meio a agonia de sentir seu corpo pegando fogo, num desespero que só foi observado pelos cinco jovens de classe média alta, que se divertiam com o espetáculo. “– Acorda mendigo!” “– Isso é pra você não sujar nossa cidade.” “– Vamos queimar o lixo das ruas.”

O fogo rapidamente se alastrou por todo o corpo de Galdino, que corria e se debatia, num flagelo interminável. A dor gerava gritos horríveis que iam, aos poucos, acordando os vizinhos que saíram de suas casas para ver o que estava acontecendo. Ninguém quis acreditar. Um homem estava caído no chão, enquanto as chamas se apossavam de seu corpo. A polícia fora chamada. Os jovens fugiram, mas um rapaz que passava pelo local, anotou a placa do carro e entregou a polícia. Os cinco foram detidos imediatamente. Na delegacia, bastou apenas uma ligação para que pudessem aguardar o julgamento em suas residências.

A notícia se espalhou rapidamente, gerando conflitos e protestos, além de despertar na sociedade uma comoção em âmbito nacional. Era difícil acreditar que cinco jovens, todos de famílias respeitadas, com a vida inteira pela frente, foram os responsáveis por tamanha atrocidade. Em sua defesa, afirmavam que haviam confundido Galdino com um mendigo e que suas intenções eram de apenas “fazer uma brincadeirinha”.

Com culpa até os dentes, em 2001 os quatro rapazes de maior idade foram condenados a 14 anos de prisão por homicídio doloso. Porém o poderio financeiro de seus pais foi uma ferramenta eficaz para burlar lei brasileira, tão frágil e corrompida. Desde que foram presos, contaram com regalias como banho quente, cortinas nas celas e exerciam funções administrativas em órgãos públicos. Em agosto de 2004 se encontravam sob liberdade condicional. O menor de idade envolvido no crime foi encaminhado para o centro de reabilitação juvenil do Distrito Federal e ficou preso apenas por três meses, apesar de ter sido condenado a um ano de reclusão.

A índia que Galdino tanto amava, todos os dias derramava suas lágrimas no rio da aldeia, esperando que a correnteza levasse consigo a dor da perda de seu companheiro Pataxó. Até que, misteriosamente, em um dia como outro qualquer, os cinco amigos que há muito não se viam, decidiram dar uma festinha na cobertura do prédio onde um deles morava. Convidaram alguns amigos, compraram bebidas, comida, cigarros e chamaram um DJ para reger o som. Curtiram a festa até de madrugada e, após todos terem saído, relembraram o dia em que queimaram Galdino vivo.

Diziam frases do tipo: “– Ele mereceu, quem manda dormir na rua como um mendigo.” “– A culpa não foi nossa, ele que estava na hora errada no lugar errado.” “– É bom que tenha aprendido a lição.” Conversavam e bebiam. Bebiam e fumavam. Fumavam e comiam. Continuaram nessa sequência até que o sono tomou um a um. Uns dormiram no sofá, outros na cadeira ou mesmo no chão, com almofadas.

Ás 9:30h da manhã, um dos vigias do prédio identificou fumaça saindo da cobertura. Ao se aproximar viu fogo em uma das janelas do apartamento e ligou para os bombeiros. Imediatamente, um fotógrafo que passava pelo local correu para registrar a cena. O corpo de bombeiros chegou em poucos minutos, porém o fogo já tinha se alastrado durante a manhã. Pouco sobrou do apartamento. Os corpos dos rapazes foram encontrados carbonizados e, a princípio, não havia qualquer explicação para a origem do fogo.

A notícia se espalhou como chama. Algumas pessoas diziam que enfim a justiça foi feita. Os convidados da festa foram interrogados, mas não imaginavam motivo algum para o apartamento inteiro pegar fogo, sem haver indícios de explosão e nem dar tempo dos cinco rapazes terem saído de lá ou telefonado. Os pais dos assassinos do índio Pataxó processaram a aldeia, pois, segundo eles, o incidente fora uma vingança causada por eles. Na verdade queriam apenas culpar alguém pelo sofrimento que estavam passando.

Para o povo indígena Pataxó-hã-hã-hãe, a natureza possui mistérios que muitas vezes são temidos por eles. A fonte de seus mitos e lendas vem geralmente do que eles não conseguem entender. Devido a esse respeito, buscam sempre um equilíbrio, retirando dela apenas o que lhes é necessário para sobreviver. Entendem que uma atitude errada pode gerar consequências desagradáveis e sentem que, como também fazem parte da natureza, ela protege e cuida deles.

O local onde Galdino foi assassinado foi rebatizado como Praça do Compromisso e lá foram colocadas duas esculturas temáticas.

VanSan
26/02/2011

VanSan é designer, poeta e está montando sua banda de blues, rock, MPB, jazz, hardcore, ou sei lá o que...

Um comentário:

Arte e Cultura Popular disse...

Um momento de reflexão que interessante o tema, o dia do indio tudo em harmonia pra se fazer o primeiro enconto e esa lembrança trágica da história, só me de depois a resposta á parte do incendio no apartamento é verdade?Um abraço.