Procurou, entre os restos de sua despensa magra, entre as garrafas de bebidas, alguma que fosse de leite - diziam que o leite devolvia o sono perdido - mas não havia uma gota em casa. E agora estava muito tarde para sair. Nada estaria aberto àquela hora. Não nesses tempos de toque de recolher. E o calor dos trópicos e os mosquitos com seus violinos desafinados só contribuíam para espantar o sono que nem havia aparecido ainda.
Pensou em abrir as janelas para que o ar fresco da noite entrasse, como ninfas aladas, e o ajudasse a respirar melhor. Mas feito isto, a choradeira, os cânticos e o cheiro das rosas, lírios, crisântemos, vindos da casa do morto inundaram seus ouvidos e narinas, lembrando-o do real motivo de sua insônia.
Havia chegado em Macondo atraído pela fama, do progresso e prosperidade, que se espalhara, boca à boca, pela Capital. Capital decadente como um mendigo bêbado e inútil, sem empregos e povoada pela violência e corrupção reinantes no país. Macondo era então um oásis, uma aldeia ainda sem vícios, mas já com nítidos traços de progressos. As pessoas eram felizes, os pássaros cantavam sinfonias a tardinha e as ruas eram perfumadas. Não demorou muito para aquele jovem, cheio de vida e vontade, montar sua própria barbearia. E ali se sentir livre e fazer, daquela vila, sua casa.
“Um prisioneiro em minha própria casa” era o que pensava agora, enquanto espantava uma muriçoca que se atrevia em seu pescoço. Ultimamente as coisas não iam bem em Macondo. A guerra civil era uma dolorosa realidade em todas as partes e Macondo não escapara de suas mazelas. Mas como nunca se envolvera com política, levava sua vidinha tranqüila de barbeiro e contador de casos. Não casara também e nem tivera filhos, o que eram preocupações a menos. E como fora baleado, acidentalmente numa das pernas (aleijando-o), em um dos ataques proferidos pelo governo contra Arcádio Buendía, tinha direito a uma pensão mirrada que lhe garantia os provimentos em épocas de vacas magras.
O morto:
Augustín era filho de um dos coronéis do partido liberal e levara seis tiros no peito quando foi pego distribuindo material subversivo numa rinha de galos. A notícia correu rápida e logo o corpo já estava sofrendo os preparativos para o funeral e não tardou para o convocarem à barbear o defunto. Não tinha medo de mortos, mas não suportava a idéia de barbear um. E negou solenemente tal convite. O que causou indignação da mãe do falecido. “O Senhor vai deixar meu filho ser enterrado assim, sem se barbear? Como um cigano imundo e sem pátria?!”
Nada faria mudá-lo de idéia. Não ia barbear o cadáver e pronto! Estava resoluto e ninguém em Macondo poderia fazê-lo mudar de idéia. Era uma pedra em sua convicção. Nem os protestos dos que diziam que só tomava esta atitude por que os homens da cidade estavam fora. Na guerra lutando por ele. O que, na verdade, pouco lhe importava. Não sabia quem cuidava de tal empresa antes, mas nunca em seus tantos anos de vila, havia cortado cabelo ou feito a barba de um qualquer que já não tivesse alma.
A noite chegou rápida como chegam as más notícias. E com ela visitantes ilustres que largaram os campos de batalha para prestarem suas últimas homenagens ao filho valente de um de seus mais legítimos coronéis. Entre eles, ninguém mais, ninguém menos que o Coronel Aureliano Buendía. Que ao deparar-se com o corpo com a barba aida por fazer indagou o “Por que?”, e recebeu uma resposta que nada o agradou, mandando chamar o barbeiro imediatamente.
Agora, sem sono, lavado por suor gosmento, com as palavras do Coronel ressoando em sua cabeça de codorna, pensava nas opções que tinha para as próximas horas. Barbear Augustín, debaixo de risos e comentários cruéis de quem, antes havia desafiado, afirmando que não barbearia sobre qualquer pena. Ou sofrê-la sem dó nem piedade pelos soldados do Coronel que lhe dera o ultimato algumas horas antes: “De manhã, antes do enterro, ou usas vossa navalha, ou usaremos nossas baionetas”. Quem conseguiria dormir com estas futuras possibilidades lhe batendo o calcanhar?
Quantas tinham sido as vezes que cortara os cabelos do Coronel quando este ainda era um menino? Levado sobre protestos por seu pai José Arcádio. “Raspa a cabeça deste fedelho”. Aureliano havia sido a primeira criança nascida em Macondo e por muitos anos foi um rapaz tímido e quieto. Hoje, ameaçava sua vida por causa das barbas dum cadáver, se esquecera dos doces e balas que ganhava deste infeliz barbeiro quando o deixava aparar seu ninho de vento sem se espernear muito.
Precisava dormir algumas horas antes de decidir que ingrato caminho tomar. Mas cadê sono? Como cochilar estando à mira de seus algozes? A noite era quente e úmida, grudando as roupas no corpo. A água estava morna e descia quase salgada. Não queria escolher a morte. Se gostasse de morrer, teria ido a guerra, para tombar com os louros de um herói. Deixar morrer-se assim... por conta duma barba? Amaldiçoou mil vezes sua profissão. Se fosse um padeiro, estaria esperando o amanhecer para mais uma fornada. Um jardineiro, o acordar das flores. Não para deslizar sua lâmina num rosto frio de um conhecido seu que agora jaz morto.
Pensou em apelar para Dona Úrsula, mãe do Coronel Aureliano. Mas só em cogitar esta possibilidade ouviu, como se ela estivesse ao seu lado, sua voz dizendo: “Até um traidor tem o direito de chegar ao seu último destino com a barba feita. Que dirá um filho de Macondo!”. Arrepiou-se todo. Estava realmente num beco sem saídas como um porco preste a entrar na faca. Demasiadamente velho para empreitar uma fuga pelo rio pedregoso e de águas torrenciais, e não queria acabar seus dias como um fugitivo. Caçado tal um bandido. Era só um barbeiro que não queria barbear um morto. Mas agora também, já era tarde demais para qualquer nova opção. Sua cara de náufrago, ao se descobrir náufrago, testemunhava os primeiros raios de sol. Logo seria dia. E ele não tinha mais tempo. Uma navalha e um defunto os esperavam.
Pensou em abrir as janelas para que o ar fresco da noite entrasse, como ninfas aladas, e o ajudasse a respirar melhor. Mas feito isto, a choradeira, os cânticos e o cheiro das rosas, lírios, crisântemos, vindos da casa do morto inundaram seus ouvidos e narinas, lembrando-o do real motivo de sua insônia.
Havia chegado em Macondo atraído pela fama, do progresso e prosperidade, que se espalhara, boca à boca, pela Capital. Capital decadente como um mendigo bêbado e inútil, sem empregos e povoada pela violência e corrupção reinantes no país. Macondo era então um oásis, uma aldeia ainda sem vícios, mas já com nítidos traços de progressos. As pessoas eram felizes, os pássaros cantavam sinfonias a tardinha e as ruas eram perfumadas. Não demorou muito para aquele jovem, cheio de vida e vontade, montar sua própria barbearia. E ali se sentir livre e fazer, daquela vila, sua casa.
“Um prisioneiro em minha própria casa” era o que pensava agora, enquanto espantava uma muriçoca que se atrevia em seu pescoço. Ultimamente as coisas não iam bem em Macondo. A guerra civil era uma dolorosa realidade em todas as partes e Macondo não escapara de suas mazelas. Mas como nunca se envolvera com política, levava sua vidinha tranqüila de barbeiro e contador de casos. Não casara também e nem tivera filhos, o que eram preocupações a menos. E como fora baleado, acidentalmente numa das pernas (aleijando-o), em um dos ataques proferidos pelo governo contra Arcádio Buendía, tinha direito a uma pensão mirrada que lhe garantia os provimentos em épocas de vacas magras.
O morto:
Augustín era filho de um dos coronéis do partido liberal e levara seis tiros no peito quando foi pego distribuindo material subversivo numa rinha de galos. A notícia correu rápida e logo o corpo já estava sofrendo os preparativos para o funeral e não tardou para o convocarem à barbear o defunto. Não tinha medo de mortos, mas não suportava a idéia de barbear um. E negou solenemente tal convite. O que causou indignação da mãe do falecido. “O Senhor vai deixar meu filho ser enterrado assim, sem se barbear? Como um cigano imundo e sem pátria?!”
Nada faria mudá-lo de idéia. Não ia barbear o cadáver e pronto! Estava resoluto e ninguém em Macondo poderia fazê-lo mudar de idéia. Era uma pedra em sua convicção. Nem os protestos dos que diziam que só tomava esta atitude por que os homens da cidade estavam fora. Na guerra lutando por ele. O que, na verdade, pouco lhe importava. Não sabia quem cuidava de tal empresa antes, mas nunca em seus tantos anos de vila, havia cortado cabelo ou feito a barba de um qualquer que já não tivesse alma.
A noite chegou rápida como chegam as más notícias. E com ela visitantes ilustres que largaram os campos de batalha para prestarem suas últimas homenagens ao filho valente de um de seus mais legítimos coronéis. Entre eles, ninguém mais, ninguém menos que o Coronel Aureliano Buendía. Que ao deparar-se com o corpo com a barba aida por fazer indagou o “Por que?”, e recebeu uma resposta que nada o agradou, mandando chamar o barbeiro imediatamente.
Agora, sem sono, lavado por suor gosmento, com as palavras do Coronel ressoando em sua cabeça de codorna, pensava nas opções que tinha para as próximas horas. Barbear Augustín, debaixo de risos e comentários cruéis de quem, antes havia desafiado, afirmando que não barbearia sobre qualquer pena. Ou sofrê-la sem dó nem piedade pelos soldados do Coronel que lhe dera o ultimato algumas horas antes: “De manhã, antes do enterro, ou usas vossa navalha, ou usaremos nossas baionetas”. Quem conseguiria dormir com estas futuras possibilidades lhe batendo o calcanhar?
Quantas tinham sido as vezes que cortara os cabelos do Coronel quando este ainda era um menino? Levado sobre protestos por seu pai José Arcádio. “Raspa a cabeça deste fedelho”. Aureliano havia sido a primeira criança nascida em Macondo e por muitos anos foi um rapaz tímido e quieto. Hoje, ameaçava sua vida por causa das barbas dum cadáver, se esquecera dos doces e balas que ganhava deste infeliz barbeiro quando o deixava aparar seu ninho de vento sem se espernear muito.
Precisava dormir algumas horas antes de decidir que ingrato caminho tomar. Mas cadê sono? Como cochilar estando à mira de seus algozes? A noite era quente e úmida, grudando as roupas no corpo. A água estava morna e descia quase salgada. Não queria escolher a morte. Se gostasse de morrer, teria ido a guerra, para tombar com os louros de um herói. Deixar morrer-se assim... por conta duma barba? Amaldiçoou mil vezes sua profissão. Se fosse um padeiro, estaria esperando o amanhecer para mais uma fornada. Um jardineiro, o acordar das flores. Não para deslizar sua lâmina num rosto frio de um conhecido seu que agora jaz morto.
Pensou em apelar para Dona Úrsula, mãe do Coronel Aureliano. Mas só em cogitar esta possibilidade ouviu, como se ela estivesse ao seu lado, sua voz dizendo: “Até um traidor tem o direito de chegar ao seu último destino com a barba feita. Que dirá um filho de Macondo!”. Arrepiou-se todo. Estava realmente num beco sem saídas como um porco preste a entrar na faca. Demasiadamente velho para empreitar uma fuga pelo rio pedregoso e de águas torrenciais, e não queria acabar seus dias como um fugitivo. Caçado tal um bandido. Era só um barbeiro que não queria barbear um morto. Mas agora também, já era tarde demais para qualquer nova opção. Sua cara de náufrago, ao se descobrir náufrago, testemunhava os primeiros raios de sol. Logo seria dia. E ele não tinha mais tempo. Uma navalha e um defunto os esperavam.
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