Valentina sumiu quando eu tinha 12 anos. No dia em que o Brasil perdeu para Itália na Copa de 82. Foram minhas duas primeiras lições sobre perda. Valentina foi minha companheira inseparável numa época inesquecível. Uma gatinha branca, como o pires com leite que eu colocava todo dia de manhã para ela, dengosa e carinhosa como poucas namoradas foram anos depois, e com um olhar humano onde se podia saber exatamente o que queria só de olhar para suas grandes contas esverdeados. Ela sumiu, naquela tarde de luto para o Brasil, e um luto muito maior para mim.
Naquela época todos os meus amigos tinham cães, piriquitos, sapos... e eu tinha a Valentina. Minha irmã queria batizá-la de Snow Ball. Snow Ball não... ter gato já era coisa de viado, acha mesmo que eu ia colocar o nome dela de “Bola de Neve”? Não! Valentina era minha personagem preferida dos quadrinhos. Aquela fotógrafa sedutora que povoou minha imaginação, imortalizada pelos traços de Guido Crepax. E assim foi batizada: Valentina. Quando sumiu meus pais tentaram substituir o vazio por outros animais. Primeiro uma outra gata, mas a emenda saiu pior que o soneto. Era olhar para a imitação barata e chorar lembrando da minha insubstituível felina. Depois me deram toda sorte de animais de estimação que um Pet Shop podia oferecer. Nada supria sua ausência.
Valentina me seguia dia e noite. Onde eu fosse lá estava Valentina ronronando ao meu lado. Quando jogávamos bola no campinho, ela subia numa árvore e ficava a me observar, torcendo por mim, com aquele olhar profundo e doce. Na escola, bastava eu espiar pela janela, e advinha quem estava lá me esperando? Nossa amizade incomodava meu pai, que dizia: “Gato é bicho que não ama ninguém, ama é conforto e comida”. Ah Pai, então vai ter um cachorro bobo e babão. Eu sempre achei os gatos animais com personalidade, inteligentes e independentes. E isso me fascinava em Valentina.
Vários anos se passaram. A Copa do Mundo mais uma vez vem chegando. O Brasil conquistou duas copas depois daquela decepção de 82 e de novo é o favorito para o título. Eu, obviamente cresci, casei, tive filhos, mas não perdi minha adoração por gatos. Adoração entre aspas. Nunca mais tive um gato fisicamente. Minha adoração agora é mais pela imagem. Minha casa é toda decorada com motivos felinos. Dos lençóis aos copos do bar. Dos quadros na parede aos bibelôs que enfeitam toda uma estante. É gato pra cacete. Minha mulher não se importa. Diz que a casa fica bonita assim, meus filhos pedem um gato de verdade. Mas só eu sei como sofri com a perda da Valentina. Não quero expô-los a esta possibilidade.
Sexta-feira. Calor de janeiro. Meus amigos me convidam para uma cerveja depois do trabalho. Bar do Seu Antônio, dizem que é um boteco, mas que tem uns artistas de Nova Iguaçu que freqüentam lá... sei não... artistas de Nova Iguaçu? Chegamos as 21h. O Bar está lotado! Todos os bares em volta estão cheios. Olho em volta e não conheço ninguém. Sinto-me um estrangeiro. Mas meu amigo conhece uns poetas que nos convidam para sentar à mesa com eles. Beleza. A cerveja é bem gelada e o tira gosto farto. Alguma coisa começa a me incomodar, não sei o que é, uma sensação estranha de estar sendo observado, procuro nas mesas e não vejo ninguém me olhando. Esquisito. Continuo procurando e nada. Ninguém. Mas a sensação é nítida.
Um dos poetas percebe que eu estou distante. Eu explico o que sinto. E ele, sem pestanejar, me diz: “Deve ser aquele gato branco ali naquela sacada nos sacando”. Meu Deus! Meu coração dispara. A respiração pára. É Valentina!!! Mas como, Valentina? Ela não poderia viver tantos anos assim. Mesmo gastando suas 7 vidas. E eu nunca ouvi falar em reencarnação de gatos. Mas sei que é ela. Observando-me com seu olhar humano como sempre fez na minha infância. Valentina. Valentina. Não me contenho, saio da mesa meio abobado. Ninguém entende nada. Vou em direção ao prédio. Chamo seu nome, ela desce pulando aqui e acolá até repousar em meus braços. Volto para o bar e pergunto para um dos malucos: “Quem mora ali? Vocês conhecem esta gata há muito tempo?”. Um dos poetas diz que nem sabia que era uma gata, mas que ali mora uma gata de verdade de nome Lígia. “Eu preciso falar com ela!” “Com a gata?” “É! Com a dona da gata!”. Papo doido. Estava angustiando-me. O poeta disse que a gatinha branca, todo fim de semana se deita naquela varanda para ficar observando os boêmios beberem. É só começar a noite que ela aparece. E com seus olhos de farol registra cada movimento dos bares daquela área.
Vou até ao portão do prédio. Toco no número do apartamento. Atende uma voz de mulher. “Quem é?” “Eu gostaria de falar com a senhora a respeito de sua gata”. Já na sala de estar de Lígia (e que gata mesmo!!) com Valentina (que ela chama de Mimi) no colo ofereço um bom dinheiro por ela. Lígia sem muito apego ao bichano, aceita, meio sem acreditar que alguém pudesse fazer uma oferta tão alta pela sua vira-lata (deve estar bêbado - pensa). Desço feliz como - só me lembro estive - na minha mais tenra infância. Com Valentina nos braços e os olhos marejados. É tudo tão estranho como num filme de Felline ou num sonho. Fico olhando para a gata, sei que é a Valentina apesar de parecer bem mais jovem do que quando sumiu. Não quero entender. Os poetas me olham de um jeito esquisito. Como se me entendessem. Meus amigos não. Estão confusos. Preciso ir embora. Deixo uns trocados na mesa e vou embora.
Em casa conto para minha esposa toda a história. Ela me olha de modo mais estranho ainda. Mas se eu estou feliz, ela está também. No dia seguinte as crianças fazem a maior festa com a novidade peluda. Eu ainda sem acreditar em minha própria sorte, agradeço aos deuses egípcios. Valentina me olha enquanto se enrosca entre minhas pernas. Minha felicidade é assustadora. Só é menor que meu medo em perdê-la de novo. Eu não sei se aquela bola de neve felpuda é minha Valentina original. Não existem respostas lógicas para isso. Mas eu sinto que é ela de alguma maneira. Seu jeito de observar as coisas, seu olhar humano, seu afeto imediato por mim e por meus filhos, não sei explicar... o que sei, é que eu não quero explicações. E que se, na Copa do Mundo, o Brasil jogar contra a Itália de novo eu vou trancá-la numa gaiola. Ah vou...
Naquela época todos os meus amigos tinham cães, piriquitos, sapos... e eu tinha a Valentina. Minha irmã queria batizá-la de Snow Ball. Snow Ball não... ter gato já era coisa de viado, acha mesmo que eu ia colocar o nome dela de “Bola de Neve”? Não! Valentina era minha personagem preferida dos quadrinhos. Aquela fotógrafa sedutora que povoou minha imaginação, imortalizada pelos traços de Guido Crepax. E assim foi batizada: Valentina. Quando sumiu meus pais tentaram substituir o vazio por outros animais. Primeiro uma outra gata, mas a emenda saiu pior que o soneto. Era olhar para a imitação barata e chorar lembrando da minha insubstituível felina. Depois me deram toda sorte de animais de estimação que um Pet Shop podia oferecer. Nada supria sua ausência.
Valentina me seguia dia e noite. Onde eu fosse lá estava Valentina ronronando ao meu lado. Quando jogávamos bola no campinho, ela subia numa árvore e ficava a me observar, torcendo por mim, com aquele olhar profundo e doce. Na escola, bastava eu espiar pela janela, e advinha quem estava lá me esperando? Nossa amizade incomodava meu pai, que dizia: “Gato é bicho que não ama ninguém, ama é conforto e comida”. Ah Pai, então vai ter um cachorro bobo e babão. Eu sempre achei os gatos animais com personalidade, inteligentes e independentes. E isso me fascinava em Valentina.
Vários anos se passaram. A Copa do Mundo mais uma vez vem chegando. O Brasil conquistou duas copas depois daquela decepção de 82 e de novo é o favorito para o título. Eu, obviamente cresci, casei, tive filhos, mas não perdi minha adoração por gatos. Adoração entre aspas. Nunca mais tive um gato fisicamente. Minha adoração agora é mais pela imagem. Minha casa é toda decorada com motivos felinos. Dos lençóis aos copos do bar. Dos quadros na parede aos bibelôs que enfeitam toda uma estante. É gato pra cacete. Minha mulher não se importa. Diz que a casa fica bonita assim, meus filhos pedem um gato de verdade. Mas só eu sei como sofri com a perda da Valentina. Não quero expô-los a esta possibilidade.
Sexta-feira. Calor de janeiro. Meus amigos me convidam para uma cerveja depois do trabalho. Bar do Seu Antônio, dizem que é um boteco, mas que tem uns artistas de Nova Iguaçu que freqüentam lá... sei não... artistas de Nova Iguaçu? Chegamos as 21h. O Bar está lotado! Todos os bares em volta estão cheios. Olho em volta e não conheço ninguém. Sinto-me um estrangeiro. Mas meu amigo conhece uns poetas que nos convidam para sentar à mesa com eles. Beleza. A cerveja é bem gelada e o tira gosto farto. Alguma coisa começa a me incomodar, não sei o que é, uma sensação estranha de estar sendo observado, procuro nas mesas e não vejo ninguém me olhando. Esquisito. Continuo procurando e nada. Ninguém. Mas a sensação é nítida.
Um dos poetas percebe que eu estou distante. Eu explico o que sinto. E ele, sem pestanejar, me diz: “Deve ser aquele gato branco ali naquela sacada nos sacando”. Meu Deus! Meu coração dispara. A respiração pára. É Valentina!!! Mas como, Valentina? Ela não poderia viver tantos anos assim. Mesmo gastando suas 7 vidas. E eu nunca ouvi falar em reencarnação de gatos. Mas sei que é ela. Observando-me com seu olhar humano como sempre fez na minha infância. Valentina. Valentina. Não me contenho, saio da mesa meio abobado. Ninguém entende nada. Vou em direção ao prédio. Chamo seu nome, ela desce pulando aqui e acolá até repousar em meus braços. Volto para o bar e pergunto para um dos malucos: “Quem mora ali? Vocês conhecem esta gata há muito tempo?”. Um dos poetas diz que nem sabia que era uma gata, mas que ali mora uma gata de verdade de nome Lígia. “Eu preciso falar com ela!” “Com a gata?” “É! Com a dona da gata!”. Papo doido. Estava angustiando-me. O poeta disse que a gatinha branca, todo fim de semana se deita naquela varanda para ficar observando os boêmios beberem. É só começar a noite que ela aparece. E com seus olhos de farol registra cada movimento dos bares daquela área.
Vou até ao portão do prédio. Toco no número do apartamento. Atende uma voz de mulher. “Quem é?” “Eu gostaria de falar com a senhora a respeito de sua gata”. Já na sala de estar de Lígia (e que gata mesmo!!) com Valentina (que ela chama de Mimi) no colo ofereço um bom dinheiro por ela. Lígia sem muito apego ao bichano, aceita, meio sem acreditar que alguém pudesse fazer uma oferta tão alta pela sua vira-lata (deve estar bêbado - pensa). Desço feliz como - só me lembro estive - na minha mais tenra infância. Com Valentina nos braços e os olhos marejados. É tudo tão estranho como num filme de Felline ou num sonho. Fico olhando para a gata, sei que é a Valentina apesar de parecer bem mais jovem do que quando sumiu. Não quero entender. Os poetas me olham de um jeito esquisito. Como se me entendessem. Meus amigos não. Estão confusos. Preciso ir embora. Deixo uns trocados na mesa e vou embora.
Em casa conto para minha esposa toda a história. Ela me olha de modo mais estranho ainda. Mas se eu estou feliz, ela está também. No dia seguinte as crianças fazem a maior festa com a novidade peluda. Eu ainda sem acreditar em minha própria sorte, agradeço aos deuses egípcios. Valentina me olha enquanto se enrosca entre minhas pernas. Minha felicidade é assustadora. Só é menor que meu medo em perdê-la de novo. Eu não sei se aquela bola de neve felpuda é minha Valentina original. Não existem respostas lógicas para isso. Mas eu sinto que é ela de alguma maneira. Seu jeito de observar as coisas, seu olhar humano, seu afeto imediato por mim e por meus filhos, não sei explicar... o que sei, é que eu não quero explicações. E que se, na Copa do Mundo, o Brasil jogar contra a Itália de novo eu vou trancá-la numa gaiola. Ah vou...
Nenhum comentário:
Postar um comentário