quarta-feira, 9 de março de 2011

O Médico e O Monstro


O Dr. Percival foi o primeiro a notar o retorno do, quase, espectro para o entorno do antigo IML. Da janela de seu apartamento, que tem vista (nem tão privilegiada assim) do prédio abandonado do IML e do Cemitério de Nova Iguaçu, percebeu que o velho, ex-funcionário do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, havia voltado após um ano de sumiço. Quando as atividades cessaram e todos foram, ou transferidos ou aposentados, desapareceram os rabecões, as ambulâncias dos bombeiros e o velho matusalém. Mas que surpresa não foi para Dr. Percival (notório observador do improvável) saber que a velha figura havia alugado uma casa (quase uma caverna de alvenaria) em frente ao seu funesto emprego. E o mais aterrador: continuava se vestindo como se ainda estivesse na ativa. Com sua indefectível galocha e seu jaleco branco.

Insuportável para Dr. Percival eram as perguntas que soavam como gongos em sua cabeça: “Por onde andou este sujeito? Por que voltou exatamente para cá? Por que o uniforme?”. Dr. Percival, antes um estudioso da filosofia, um grande interessado na loucura, especulava... especulava... mas queria respostas. Por ser médico, filósofo, não acreditava no sobrenatural, ainda que tenha lhe passado pela cabeça - assim que viu o ancião pela primeira vez de volta - a possibilidade de ser uma visagem, um fantasma que volta para onde passou a maior parte da vida... mas não, calma aí, haveria explicação mais palpável. E isso passou a incomodá-lo terrivelmente.

Passava de carro em frente à sua residência misteriosa com seu muro pintado de várias e várias cores e espichava os olhos lá para dentro, buscando respostas, conseguia mistérios... pouco via. Também não queria ficar taxado de bisbilhoteiro. Achou por bem parar com esta fixação. Ia para seu consultório e quando as perguntas começavam a minar como infiltrações, tentava pensar nos problemas de seus clientes, nas novas drogas poderosas, no novo equipamento de tomografia computadorizada, na planta que precisava de água, no vizinho que houve música alta todo sábado arrancando-o da cama mais cedo do que gostaria. Enfim, Dr. Percival tentava esquecer. Mas sua fascinação pelo inexplicável o fez tomar uma decisão: ia entrevistar o exótico vizinho e aplacar toda sua curiosidade investigativa.

Ia abordá-lo de manhã, quando ele saía para lavar a calçada com uma mangueira (lavar o necrotério era uma de suas funções naquela repartição) e alimentar, com ossos, os cães. E com decisão tomada passou a tarde e a noite em paz como há muito não conseguia. Atendeu toda sua lista de pacientes, jogou seu futebolzinho sagrado de quarta-feira, jantou, fez amor com sua esposa e teve uma noite tranqüila de sono profundo. A manhã chegou com seus primeiros raios de sol que enchiam a casa de vida. Dr. Percival levantou-se disposto e excitado como criança na manhã de Natal. Não contou o que ia fazer para sua esposa. No mínimo ia chamá-lo de maluco. De doente. Atirou-se na rua em direção ao desconhecido, mas titubeou: “O que vou falar? Com que autoridade ou desculpa vou abordar este homem sinistro?” Existem pessoas na qual a curiosidade pode matar. Dr. Percival era uma dessas pessoas. Se alguém falasse com ele qualquer coisa incompleta e deixasse um “deixa pra lá, esquece” era capaz de perturbar tanto o pobre-diabo com: “agora fala” “começou, termina” que ganhava no cansaço.

Viu a bizarra e misteriosa personagem na calçada, jogando água com a mesma disposição que lavava os azulejos brancos encardidos do extinto IML. A cachorrada disputava a tapas e mordidas um grande osso, ainda carnudo. Respirou fundo e encarou a empreitada: “Bom dia meu senhor!” um “bom dia” baixo, quase um grunhido foi o que ganhou como resposta. Fez mais duas ou três perguntas que tiveram respostas monossilábicas. O velho não era afeito a sociabilidade. Não era acostumado a pessoas puxarem conversa com ele. Nunca foi. Percebeu que Dr. Percival falava enquanto escaneava todo o local. Puxou a porta, impedindo qualquer visão do que havia lá dentro. Dr. Percival assumiu a derrota. Constatou que era impossível arrancar-lhe qualquer resposta mais elucidativa. Deu meia volta e voltou para casa. Puto. Com mais pulgas mordendo-lhe o cangote que antes. Tinha que encontrar uma maneira de descobrir o que rolava por baixo dos panos. E só havia um jeito. Entrar na toca do lobo. Tinha chegado a difícil conclusão. Ia invadir a bat-caverna e trazer luz a todas suas dúvidas.

Um homem íntegro; idôneo; exemplo para a sociedade; pai e marido invejado; médico respeitadíssimo; peladeiro mediano, mas esforçado; apostando todas suas fichas, arriscando tudo, somente para matar-lhe a curiosidade. Estava preste a invadir um domicílio. A cometer um crime em nome da fome que lhe consumia a alma há algumas semanas. “Que diabos quer este velho? Por que o desenterraram dos confins do inferno? Poderia ficar onde estava - no mundo esquecível dos anônimos - mas não, tinha que aparecer saído de um conto de Edgar Alan Poe. Transformando a minha vida em um filme, um espetáculo deprimente e decadente, expondo minhas maiores fragilidades e psicoses...” Mas já ciente de que só invadindo a casa do ex-servente conseguiria ter de novo a paz, partiu naquela madrugada para a inacreditável aventura.

Passavam das duas da manhã. Vestido todo de preto (influência de filmes de espionagem e ninja, que era obrigado a assistir nas insones madrugadas televisivas). Saiu a rua certificando-se que ninguém o observava. Correu com passos tão leves que se surpreendeu com sua graça. Escalou o alto muro do vizinho e numa vacilada quase estraga tudo. “Se caio agora fudeu!”. Galgou a lage da assombração e desceu por uma janela que ficava nos fundos da casa. Tentou olhar pelo basculante, mas era impossível. A escuridão tomava conta do barraco. Com as mãos molhadas de um frio suor, tentou girar a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou tateando o local, esbarrando vagarosamente em objetos dos quais não fazia idéia do que eram. Um medo filha da puta percorreu toda sua espinha. Um ventinho frio estranho - arrepiou-lhe a alma. Uma luz se acendeu.

Na manhã seguinte a esposa de Dr. Percival e alguns amigos procuravam por ele em hospitais e delegacias, houve até um que comentou “vamos no IML”, mas ninguém encontrou o homem. Sua mulher tentava entender o “por que” dele abandonar a família. A polícia esperava um pedido de resgate. Os amigos desconfiavam de suicídio e lembravam de histórias sem importância que ganhavam proporções e ligações que nunca existiram. Nunca mais ninguém ouviu falar de Dr. Percival.

Toda manhã o ex-funcionário do Instituto Médico Legal acorda, lava a calçada e dá ossos para os cães famintos da Rua Teresinha Pinto.

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