Acho que é um final de inverno. Naquele tempo fazia frio em fim de julho. Mas não era o caso de andar com sombrinha pendurada no braço.
Lendo, recostada na espreguiçadeira, levanta os olhos e acha que reconhece uma moça de uniforme que passava. Não. Apenas mais uma moça de uniforme. E de uniforme todas se parecem.
Naquele tempo, se aquece sentada num barzinho da orla. Bem à-toa, só vendo a vida passar. Um senhor bem vestido ocupa a mesa ao lado e ensaia puxar conversa, sem sucesso. Sorri e tenta se concentrar outra vez na leitura.
Um parágrafo depois desiste. A brisa, o verde deslumbrante, o azul profundo, a tranquilidade, as nuvens preguiçosas, o colorido do dia, em tudo o cenário é igual.
Mora ainda na mesma esquina. O comércio havia mudado. A casa de vitaminas de frutas onde o conheceu é a de sempre, mas já não tem mais o mesmo charme. Foi engolida pelas lanchonetes da moda. Os empregados também são outros, já não conhecem mais os fregueses. Antigamente, em todo lugar que se frequentava por ali os garçons sabiam o nome do freguês e sempre tinha alguém que sorria e puxava assunto, gritava do outro lado do balcão e até pagava uma.
Não se rende. Vai sempre tomar caldo de cana no mesmo lugar. Lembrou que ela também gostava. Como gostava da comida árabe na galeria. Pulavam cedo da cama no sábado de manhã só para pegar a primeira leva de quibes e esfirras.
Lembra também que ela gostava de reclamar de tudo. E do dia em que o ônibus quebrou na frente do Pão de Açúcar.
Resolve levantar e ir para casa, já começa a escurecer. E o caminho até o prédio sempre leva mais tempo que o previsto. A distância é pequena, mas as distrações, muitas: desviar de cocô de cachorro, gente correndo com walkman no ouvido, manchete na banca, comprar leite e pão.
Na entrada do prédio, o porteiro entrega a correspondência. Contas para pagar, com certeza. Passa um vizinho, cumprimenta. Conhece quase todo mundo. Até as prostitutas e travestis que fazem ponto na esquina e o velho em cadeira de rodas que vive na calçada da casa em frente. Também, são quase quarenta anos morando ali.
Sobe pela escada, o elevador quebrado outra vez. Não se importava. Era uma das poucas vantagens de morar no primeiro andar.
Abre a porta, larga a correspondência e as compras em cima do sofá, e não vai para a cozinha preparar o café, não vai ao banheiro tomar banho, não liga nem a televisão para escutar o noticiário.
Passa direto para o quarto, abre a última porta do guarda-roupa e apanha na prateleira mais alta uma caixa de sapatos. Senta na cama e começa a tirar uma por uma as fotografias, até que a encontra.
Sim, lá estavam as duas, sentados no banquinho, ela de vestido pregueado, marcado na cintura, os cabelos presos como se usava, Denise no uniforme de aeromoça, que a deixava mais charmosa ainda. Não havia a estátua de Drummond. No mais, o cenário era o mesmo, o bar, os prédios acompanhando a avenida, as nuvens preguiçosas ao fundo. Por que será que em preto e branco tudo parece mais belo?
O olhar distante, acompanha, pela janela, o avião, apenas luzes piscando, sumindo atrás das nuvens, ressurgindo, até desaparecer por trás dos prédios.
Onde andará Denise?
Fecha a caixa com as fotos, guarda a caixa na prateleira. Vai para a cozinha preparar o café.
Gerusa Leal
Gerusa Leal é guerreira que não falta um encontro de poetas, um lançamento de livro ou um movimento literário em Recife. Desta vez, infelizmente, teve um contratempo e não pode comparecer. Mas seu texto foi lido a plenos pulmões como deve ser.
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